O estranhamento de todas as coisas, o desconforto frente ao mundo e a si mesmo, a vontade de transformar tudo quanto já existe, sem muita ideia de por onde começar — e, o principal, de que jeito — são particularidades daquela etapa da vida em que o sonho tem muito mais valor do que o concreto, o real e o possível. É nesse lugar em que está Merve Kült, a personagem central de “Seja Você Mesma”, com todas as incoerências a que tem direito, sem saber muito bem por onde começar a luta por aquilo que acredita ser seu, perdida, até que, como sói se passar com todo mundo, a vida se impõe, alheia a nossas vontades e ao nosso medo. O turco Cemal Alpan investe sua anti-heroína de toda a rebeldia possível no intuito de subir e descer os tons da desarmonia fundamental que é a própria razão de ser de Merve, composição graciosa de Ahsen Eroglu, que transforma em pura energia a cascata de informações dessa garota entre perdida e adorável, sempre cheia das respostas para as perguntas que ninguém lhe fez. A antimocinha de Eroglu é a definição mesma da inadequação que se sente diante de um mundo que jamais se cansa de nos oprimir, especialmente em certa quadra da vida; o problema é que, para ela, essa fase se alonga um pouco demais.
Aos 24 anos, Merve continua a mesma garota de sempre, ganhando tudo quanto há de melhor numa bandeja de prata, usufruindo dos luxos do capitalismo ao passo que não desperdiça uma oportunidade de manifestar-lhe seu repúdio e esforçando-se por bater de frente com qualquer um que se arvore em seu possível salvador. O roteiro de Alpan e Ceylan Naz Baycan dá indícios de onde estaria a chave dos segredos de polichinelo dessa figura ambivalente, quase amoral, sem pejo nenhum de se inclinar para o lado que melhor a atenda, menoscabando de todo senso de decoro. Na abertura, a fachada do edifício Kültur parece esconder um castelo trazido diretamente da Idade Média para a Istambul contemporânea; nele, Merve e a mãe, Nevra, de Zuhal Olcay, vivem junto a outros três moradores, e as cenas em que a narrativa se estende pelas dependências do prédio, espécie de fortaleza moral e retiro para as almas meio perturbadas que habitam o lugar. Alpan e Baycan esclarecem logo que as duas estão em vantagem se se analisa, por exemplo, o caso de Sehmuz, o cartomante interpretado por Ferit Aktuğ, que se encarrega de preencher todos os espaços e frequenta os vizinhos sem convite. Nevra é a dona do Kültur, que leva o nome da família, mas numa guinada meio simplória, a jornalista, num momento ruim da carreira, e a filha, cuja profusão de sonhos é inversamente proporcional às chances de torná-los reais, são forçadas a deixar seu abrigo da vida toda.
O diretor passa a conferir mais destaque a Merve depois de um primeiro ato em que esclarece quem é essa moça, uma rebelde sem causa obrigada a tomar o destino pelos chifres se de fato quiser continuar com seus privilégios. Alpan se vale do rompimento da quarta parede, trechos em que Eroglu fala ao público sem intermediários, em voz alta, para assim chamar para perto de si suas aspirações. Essas passagens do inconsciente de Merve deixam-na também mais próxima de quem assiste, e nos lembramos das horas em que faltaram-nos a confiança e sobrou o ímpeto prepotente (e autodestrutivo) que nos empurra em sentidos diversos. Mas ela acaba bem.
Filme: Seja Você Mesma
Direção: Cemal Alpan
Ano: 2023
Gêneros: Comédia romântica/Drama
Nota: 8/10