Eu gosto do papa, eu gosto de Cristo e eu amo jujuba

Eu gosto do papa, eu gosto de Cristo e eu amo jujuba

Tive ontem uma noite memorável. Fui com minha gata e bons amigos ao show dos Titãs. Lá estavam eles, os sete remanescentes da formação original, acompanhados pelo imantado produtor musical Liminha, ex-integrante dos Mutantes, que fez as vezes do Marcelo Fromer — fatidicamente morto por atropelamento em 2001 — no violão e na guitarra. Eu não sabia que o Branco Mello tinha tido um câncer de garganta e que havia se submetido a tratamento oncológico nos últimos meses. Foi ele mesmo quem contou a história no palco, com a voz rouca, combalida, contudo, heroica, carregada de emoção e de resiliência, antes de cantar mais um clássico da banda que fez a multidão pular que nem pipoca.

Acompanhei um amigo cadeirante até a área reservada para pessoas com deficiência, um tablado com privilegiada visão do palco. O regulamento da produção permitia a presença de apenas um acompanhante por PCD, de tal forma que, permaneci com o sujeito durante boa parte do show. Antes que os Titãs começassem a cantar havia cerca de dez pessoas no local. Depois disso, foi brotando mais gente no lugar, todos aparentemente hígidos, não sei bem como explicar isso sem conjecturar que muitos estavam ali por pura malandragem.

Relevei a situação até que um outro fato inusitado sucedesse. Uma mulher cutucou o meu ombro macilento, pediu para colocar uma cadeira de plástico na minha frente — já colocando — e assentou para ver o show. Eu estava empolgado demais para me chatear com qualquer coisa. A dita-cuja permaneceu a maior parte do tempo presa ao smartphone, aparentemente, sem dar grande importância ao espetáculo.

Até que a banda tocou “Nome aos bois”, cuja letra é composta pelos nomes próprios das celebridades mais abomináveis da história da humanidade, sob o ponto de vista autoral titânico. A banda achou por bem incluir o nome de Bolsonaro na letra e a reação do público foi dúbia. Parece que a maioria aprovou o improviso, mas, não posso bancar a informação, uma vez que vivo numa região do país que é um reduto da extrema-direita.

A desconhecida, que aparentava ter mais de quarenta anos, ficou claramente contrariada com a inclusão do ex-presidente na cantoria e demostrou a sua indignação ao apontar o dedo anular em riste na direção do palco. Bom observador que sou, observei, de soslaio, sem abrir o bico. Da posição desprivilegiada onde eu estava — fiquei em pé, imediatamente atrás daquela mala-sem-alça — a despeito do recorrente astigmatismo que castiga os cinquentões, percebi que, além de resmungar sozinha, ela canalizava também a sua fúria para uma famigerada rede social da internet.

Creio que a gota d’água para ela aconteceu quando os Titãs interpretaram “Igreja”, uma composição do Nando Reis, escrita nos longínquos anos 1980, cuja letra discorre sobre a mais completa falta de fé, a repulsa aos líderes religiosos e o repúdio às religiões de maneira geral. Diz um trecho da letra: “Eu não gosto de padre / Eu Não gosto de madre / Eu não gosto de frei / Eu não gosto de Bispo / Eu não gosto de Cristo / Eu não digo amém / Eu não gosto da igreja / Eu não entro na igreja / Não tenho religião”. E por aí vai.

Antes de cair fora daquele setor que não era o meu, deixei o meu especial amigo na companhia da sua esposa e dei uma última bisbilhotada na tela do celular da penetra, no exato instante em que ela descrevia para seus interlocutores que estava no show dos Titãs, que não sabia o que estava fazendo naquele lugar sentada no camarote dos aleijados, e que estava possessa por ter dado o seu suado dinheiro praquela banda de petistas sem vergonha, e que torcia para que o Nando Reis tivesse um câncer de garganta também. Fiquei tão chocado com aquelas palavras que reli só para me certificar. Tive o ímpeto de perder as estribeiras e jogá-la pra fora daquele reservado como se fosse um saco de lixo, mas, domei a minha ira, justamente no momento em que a banda tocou os primeiros acordes de “Bichos escrotos”, um som que tinha tudo a ver com a megera.

Desisti de me comportar como um selvagem. Caí fora dali, mais rápido que o defecar de um patriota sobre a Constituição Brasileira, e me juntei ao restante da turma. Uma mocinha se aproximou para oferecer balas, gomas de mascar e jujubas. Enquanto pagava pelas jujubas, sem que eu sequer requisitasse, a vendedora confidenciou que adorava ouvir as canções dos Titãs, por causa do pai que já tinha morrido, e que era um fã incondicional dos rapazes. Ela comentou que não conhecia e que não tinha gostado de uma música onde eles cantavam que não gostavam de padre, de Cristo, do papa, etecetera e tal. Sugeri que ela não levasse aqueles versos tão ao pé da letra. Rock and roll tinha dessas coisas: diversão, rebeldia e arte. Ela devolveu o troco e disse obrigado fica com Deus.

A vontade de tomar cerveja crescia, mas, se eu bebesse, passaria pelo dilema de ter que encarar filas quilométricas de homens embriagados para drenar a bexiga em banheiros químicos repletos de vômito sobrenadante. Optei por ficar com sede-de-quê até o final do espetáculo. Quando ouvi Paulo Miklos cantando “É preciso saber viver”, uma versão titânica para a composição do Erasmo Carlos, senti a fogueira do ódio sendo aos poucos aplacada por torrentes de amor genuíno. Fim do show. Os caras voltaram ao palco para o bis, mais sorridentes do que nunca, num óbvio estado de contentamento que me foi comovente. A multidão em êxtase pode, enfim, serpentear contente pela rampa, de volta à vida normal, onde um jovem brutamontes estapeava a namorada no estacionamento. De onde menos se esperava, os bichos escrotos não paravam de sair do esgoto para atazanar a paz de espírito da gente.

E, por falar em espiritualidade, quase todo mundo já sabe que eu não creio em praticamente nada, que eu não sigo religião nenhuma, mas, apesar disso, eu gosto do papa, eu gosto da ideia do Cristo e, sobretudo, eu amo jujubas, com as quais eu adoço os amargos da vida.