Filme perturbador da Netflix mostra como a inteligência artificial vai destruir a humanidade Shanna Besson / Netflix

Filme perturbador da Netflix mostra como a inteligência artificial vai destruir a humanidade

Em “Oxigênio”, cabe a uma atriz boa parte da árdua missão de, quase todo o tempo confinada num espaço pouco maior que seu próprio corpo, externar a sensação decerto muito próxima da morte — ou de um de seus atos imediatamente posteriores — de vencer a solidão gestada pela inteligência artificial e reafirmar a superioridade de sua espécie, argumento de que o cinema se socorre desde sempre, embora ronde-nos a certeza de que esses filmes venham aparecendo num intervalo  cada vez mais curto, tendência que vai se acentuar. “Ela” (2013), dirigido por Spike Jonze, talvez seja a produção com que Hollywood decidiu repaginar o conceito do homem subjugado de forma muito sui generis à máquina, que sob a estética feminina — manifesta apenas pela voz —, dispõe de sua patética figura como quer.

O que o bissexto Alexandre Aja pretende assemelha-se muito ao que se vê em “Ela”, com as inversões que distinguem seu trabalho da produção levada à tela por Jonze. Aqui, o francês — cujo filme anterior, “Amaldiçoado”, sobre um homem às voltas com as acusações do estupro e da morte da namorada, remonta a um distante 2013 —, vale-se de Elizabeth Hansen, a heroína torturada da ótima Mélanie Laurent, para, que encaremos nossa arrogância. A geneticista dedica-se a estudos que prometem desenvolver uma versão melhorada do homo sapiens sapiens. De uma hora para a outra, Hansen acorda em uma cápsula criogênica, sem ter a menor ideia do que está fazendo ali, completamente isolada e fora da órbita terrestre. Para se manter viva, conta apenas com um dispositivo chamado Medical Interface Liaison Operator (“operador de contato médico de ligação”, traduzindo-se livremente), o MILO, e uma vez que o nível de oxigênio disponível cai ininterruptamente, ela precisa buscar no que resta de sua memória um jeito de se ver livre antes que morra asfixiada. Nem é preciso dizer que Mathieu Amalric confere a MILO a assertividade macabra de que Scarlett Johansson abdica ao personificar o software que rouba a cena no freaking romance de Jonze…

Outro tema, clássico, em “Oxigênio” é o da máquina que se rebela e tenta — e muitas vezes, efetivamente, consegue — tomar o lugar do homem, sem, claro, se melindrar por pruridos éticos. O filme-fetiche nesse aspecto continua a ser, passado mais de meio século, “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), do mestre Stanley Kubrick (1928-1999). Em “2001”, Kubrick apresenta um roteiro que dosa com toda a sutileza tiradas existencialistas; conjecturas sobre o que seria do homem em meio à evolução da tecnologia, processo que, acertadamente, tachou como irreversível; e hipóteses acerca da vida em outras estruturas celestes. O HAL 9000 kubrickiano, bem como MILO em “Oxigênio”, executa suas funções com o desempenho irretocável que se espera de um mecanismo baseado em pura ciência. Contudo, em algum lugar da narrativa que o espectador não alcança direito, o caldo entorna. Hansen, da mesma forma que a tripulação comandada pelo astronauta Bowman em “2001”, se encontra perdida, à mercê das frias decisões de um punhado de algoritmos, que, a dada altura, lhe informa que suas chances de sobrevivência são de 0%. É nítida uma ponta de cinismo, morbidez e perversão tanto em HAL como em MILO (mais naquele que neste, é verdade), o que, aprofundando a reflexão, não é absurdo algum, já que foram criados por mãos humanas sob a supervisão de cérebros dominados pela sempiterna maldade da natureza do homem. Em se esticando um pouco a corda do raciocínio, poder-se-ia incluir no rol desses equipamentos demoníacos a Ava de “Ex_Machina: Instinto Artificial” (2015), do britânico Alex Garland, certamente o sci-fi mais aterrorizante do século até o momento, justamente pela doçura de Alicia Vikander. Ao contrário do que se passa em “Ex_Machina”, a humanidade não é espinafrada por um dispositivo que ela mesma desenvolveu, mas há que se apontar algumas ressalvas. Hansen não é mais uma pessoa exatamente, e passa a habitar outro planeta, não a Terra. Aqui, Aja cumpre seu papel de artista e fomenta discussões quanto à possibilidade — e, quiçá, a necessidade — de se projetar um modelo aperfeiçoado do homem. O niilismo do diretor francês é, por óbvio, muito mais refreado que o de Kubrick e Garland; no entanto, suas proposições acerca do futuro que pode nos esperar a todos, sabe-se lá se daqui a duas horas, dez anos ou cinco séculos, não deixa de escandalizar. Ao não se atrever a reinventar a roda e lançar mão da estética habitual em ficções científicas que se desdobram fora do domínio terrestre, celebrizada por Stanley Kubrick, em “Oxigênio” o público sente-se familiarizado com a história imediatamente: Aja dispensa glacês retóricos e vai direto ao ponto, não sem antes oferecer uma ou outra isca e sugerir eventuais reviravoltas, controladas, devido à exiguidade do cenário, mas ainda assim vigorosas, graças ao talento de Laurent.

De maneira a um só tempo despretensiosa e séria, “Oxigênio” põe a audiência num drama inusitado, mas capaz de fundir a cabeça de qualquer um. À medida que fia-se em criaturas que não conhece de todo, o homem renuncia à sua humanidade, se torna mais frágil, mais vulnerável, mais infeliz. O cinema nos atira ao rosto essa lógica constatação há, pelo menos, meio século.


Filme: Oxigênio
Direção: Alexandre Aja
Ano: 2021
Gêneros: Ficção científica/Drama/Suspense
Nota: 9/10