De quando em quando, é bom topar com empreitadas como “É O Fim”. Lamentavelmente, a autoironia corajosa de Evan Goldberg e Seth Rogen é uma exceção muito discreta, literalmente maldita, que delata a hipocrisia e o cinismo de Hollywood na medida em que abre uma larga avenida para que se trafegue rumo à direção do absurdo, que por sua vez também esconde algumas verdades. Goldberg e Rogen fazem vir à superfície histórias de abusos sexuais, das mais inauditas modalidades de depravação, golpes financeiros, vícios renitentes em toda a sorte de drogas, enfim, muito do que há de verdadeiramente execrável nos bastidores do cinema, ensejando críticas felizes aos valores que a América sacramentou como monoliticamente perfeitos, a começar por um que, não por acaso, o cinema espinafra desde sempre. No entanto, para chegar lá, os diretores-roteiristas valem-se de expedientes no mínimo originais.
Para começar, todos os atores interpretam a si mesmos — “interpretam” porque não é muito prudente anunciar diante de espectadores do mundo todo que se tem uma queda por maconha, festas que quase sempre descambam em orgias faunescas ou arte contemporânea na decoração. Além disso, quanto mais corpo a história toma, mais clara se torna a urgência de se desmistificar certas falsas verdades, ainda que desabridamente notórias, sobre o showbiz. Mesmo nas recepçõezinhas barulhentas em que todos fingem esquecer rixas pré-históricas e bancam os civilizados, há situações incontornáveis, que só mesmo a força da linguagem corporal trata de colocar freio. É o que acontece quando Michael Cera inventa de prolongar para além do tolerável uma cantada em Rihanna, numa das cenas mais rápidas (e divertidas) do primeiro ato. A cantora barbadense não espera que o amor se lhe revele neste lugar sem esperança, mas respeito é bom e conserva os dentes — quem melhor do que ela para evocar ideias como feminismo, empoderamento das mulheres, liberdade sexual e consciência étnica num elenco numeroso feito de homens em quase 80%? Quando o ferro já está quente, Goldberg e Rogen moldam “É O Fim” de modo a conseguirem o tridente com o qual pretendem atiçar uma fogueira que se alastra rápido.
A casa de James Franco vira o Céu em que Rogen, Jonah Hill, Jay Baruchel, Craig Robinson, Danny McBride e o próprio anfitrião refugiam-se do fim a que alude o título, momento em que a narrativa embarca de vez no absurdo e remonta a “Jay and Seth Versus the Apocalypse” (2007), curta-metragem dirigido por Jason Stone de onde saiu o argumento central — os demais morreram todos, inclusive Emma Watson, deixando a cômoda eternidade da franquia “Harry Potter” e começando a despontar como uma atriz séria, fase marcada por “Bling Ring: A Gangue de Hollywood” (2013), em que Sofia Coppola também deu suas traulitadas no star system. A edição de Zene Baker, plena de ótimos efeitos de computação gráfica, junta-se à fotografia de Brandon Trost produzindo sequências a um só tempo repulsivas e bizarramente histriônicas, como a que registra um demônio pantagruélico tomando a alma (e o corpo) de Hill, alvo da maior parte das blagues internas, sobre suas indicações aos Oscars de Melhor Ator Coadjuvante por “O Homem que Mudou o Jogo” (2011) e “O Lobo de Wall Street” (2013), de Bennett Miller e Martin Scorsese, respectivamente, e ao que foi reduzida sua carreira, de volta ao eixo em 2021 com “Não Olhe para Cima”, outra maravilha contracultural do cinemão, assinada por Adam McKay.
Se o diabo mora nos detalhes como brada a voz rouca das ruas — a mim, parece-me mais sensato pensar que Deus é o seu inquilino —, “É O Fim” é uma trama que faria inveja a Kenneth Anger (1927-2023), o satanista que dedicou sua obra a uma louvação estranha do mal, o que, por evidente, não deixa de suscitar o resultado inverso. Da mesma forma que Lúcifer é a estrela teimosa que disputa espaço com o sol no alvorecer e é logo ofuscada, a arte pode ser a redenção ou a sarça ardente e infinita para o homem, ávido por conhecer. Essa é, meramente, uma questão de perspectiva, como se tem em “É O Fim”, e Hollywood até pode ser um purgatório babilônio, mas não o inferno.
Filme: É O Fim
Direção: Evan Goldberg e Seth Rogen
Ano: 2013
Gêneros: Comédia/Humor macabro
Nota: 8/10