Faça um favor a si mesmo e assista na Netflix a esse filme adorável e encantador Divulgação / Sony Pictures

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Se conhecêssemos a intimidade uns dos outros, ninguém mais se cumprimentaria. Naturalmente, a frase, uma das mais certeiras do grande Nelson Rodrigues (1912-1980) não mirava apenas os hábitos sexuais; no entanto, é impossível não se completar seu pensamento com uma referência explícita ao que se faz — e, mais importante, ao que se deixa de fazer — na horizontal. Foi por causa daqueles que dedicavam-se a supor o que acontecia sob lençóis alheios que William Moulton Marston (1893-1947) enfrentou o maior drama de sua vida, registrado em “Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas”, e o filme de Angela Robinson, lamentavelmente, é mais atual do que se poderia querer. Desde 2008, vigora a lista de livros proibidos segundo os critérios de uma tal Associação Norte-Americana de Bibliotecas (ALA, na sigla em inglês), que elegeu “Gender Queer: A Memoir” (2019) uma história em quadrinhos de relatos pessoais sobre identidade de gênero, como inimigo público número um do povo dos Estados Unidos hoje. O livro da escritora e cartunista americana Maia Kobabe aprofunda-se na sensação de desajuste social da autora, da adolescência à idade adulta, e a epifania de descobrir-se, afinal, uma pessoa não-binária ou de gênero fluido, isto é, que não se identifica com um gênero específico, ou têm fases em que se inclina mais para um gênero ou outro. O fato de “Gender Queer” ser um trabalho que tenta explicar a novíssima sexualidade do século 21 com uma linguagem e tipos que remetem aos quadrinhos decerto seria motivo de orgulho para Marston 76 anos depois de sua morte: ao longo de quase toda a vida, o psicólogo tentou comprovar uma teoria que englobava todos os padrões sexuais possíveis em quatro comportamentos. Só o conseguiu no momento em que desistiu da ciência pura e passou a aplicá-la em curvas exuberantes, longos cabelos negros e um cabo longo e grosso

Até que viesse à luz a Mulher-Maravilha do jeito que a conhecemos, Robinson mergulha na vida de seu biografado, e até explique o que Marston pretendia, retrocede a Nova York de 1945. O doutor William Marston, já venerado por nerds e acadêmicos do mundo todo e, claro, apontado como o grande nome da indústria cultural do século passado, sujeita-se ao interrogatório de Josette Frank (1893-1989), especialista em literatura infantil americana, consultora educacional e presidente da Associação Norte-Americana de Estudos da Infância (CSAA). Frank queria que Marston admitisse o que todos já sabiam: sua super-heroína, inicialmente chamada de Suprema, chefe das amazonas de uma certa ilha Paraíso, fora pensada como um ícone a favor da ainda incipiente, quiçá só desejada, liberação feminina, ameaça pouco velada, quase gritante ao patriarcado, à família, à moral, à Igreja, e pior, ao capitalismo ele mesmo. Juntando-se as duas pontas do texto da diretora-roteirista, tem-se logo no primeiro ato a confirmação com que Marston tanto sonhara: a teoria DISC (dominação, indução, submissão e cumplicidade) é cristalinamente eficaz, ou do contrário não teria sido alvo da verdadeira cruzada que se levantou contra ele, com savonarolas e torquemadas pronto a atirá-lo ao fogo, o que de fato ocorreu com seus gibis, numa cena que nunca deixa de causar espécie. O público só tem a devida base para alcançar essa conclusão transcorridos mais de 80% do filme; muito antes, fica claro que o título alude a Elizabeth Holloway Marston (1893-1993) e Olive Byrne (1904-1990), as companheiras de Marston — que, em verdade, eram mesmo é companheiras entre si: depois de sua morte, em 1947, Elizabeth e Olive mantiveram a aura de guerreiras de uma terra utópica de justiça, amor e liberdade em suas formas mais diversas, e continuaram juntas por mais 38 anos, até a morte de Olive, ex-aluna do marido de sua nova cônjuge. Marston, Elizabeth e Olive conceberam e educaram quatro filhos. Peter Marston (1928-2017), o segundo, fundou e dirigiu o Museu da Mulher-Maravilha até 2017, quando uniu-se aos pais que tanto orgulho lhe inspiraram.


Filme: Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas
Direção: Angela Robinson
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.