Uma das grandes especialidades de Hollywood é espinafrar o capitalismo, o único sistema econômico que tornaria possível a ascensão profissional de uma miríade de talentos diametralmente opostos entre si num meio tão competitivo e pérfido quanto o cinema. “A Grande Virada” é um filme involuntariamente sarcástico, em que os podres de gente muito rica vêm a lume antes mesmo do primeiro quadro. Em letras garrafais imitando prata sobre um fundo negro, todo esse destaque para o homem responsável por produzir e bancar a distribuição do longa de John Wells é hoje, no mínimo, vexatória. Em 2008, quando “A Grande Virada” foi lançado, Harvey Weinstein já tinha consolidado sua reputação secreta de canalha incorrigível com o assédio a atrizes, figurantes, maquiadoras, enfim, mulheres que estivessem sob sua influência e pelas quais ele jamais imaginou ser denunciado, valendo-se do argumento sórdido — e verdadeiro e óbvio — de que elas precisavam daquele emprego para comer, amparar pais idosos, criar filhos pequenos e, outra ironia, apoiar maridos desempregados, não como um expediente que mantivesse seus Porsches, garantisse o salário do exército de mordomos e arrumadeiras invisíveis que tocam seus palacetes ou lhes permitisse renovar todo o guarda-roupa a cada nova coleção de alta costura.
Robert Walker, homônimo perfeito daquele ator talentoso e desafortunado, é, como, Weinstein — em excetuando-se a longa ficha de crimes sexuais do ex-magnata da indústria cinematográfica —, a encarnação dessa aura um tanto besta de ganhar dinheiro para consumir, mais e mais, acumular, ostentar, a essência invencível do estilo de vida americano. Ao longo da carreira, Ben Affleck tem se saído melhor que a encomenda na pele desses tipos ora desditosos, ora bem-sucedidos, mas sempre imersos em discussões éticas sobre o mundo corporativo e, o principal, rodeado de bens materiais de que a maior parte dos terráqueos nunca poderia desfrutar, ainda que vivesse mil anos — nota à margem: Affleck e sua senhora, a exuberante J.Lo, acabaram de comprar uma mansão com 24 banheiros, avaliada em trezentos milhões de dólares —, como se vê no excelente “AIR: A História Por Trás do Logo” (2023), dirigido e co-estrelado por ele, e no jurássico “O Primeiro Milhão” (2000), no qual Ben Younger já tecia especulações perturbadoras sobre o que viu oito anos depois. A segunda-feira trazida pelo dia 15 de setembro de 2008 foi a martelada certeira no último prego do caixão de uma hecatombe que se arrastava há pelo menos um ano e redefiniu os rumos do capitalismo nos Estados Unidos e num pedaço do globo. Por um tempo.
Da noite para o dia, Walker, que já aspirava à presidência da General Transportation Systems, uma empresa que vende tecnologia para a construção e reparo de navios e estaleiros, está na rua. O que pôde juntar durante uma década na empresa, chamada de GTX, por natural, não cobre as despesas de um mês das contas que teimam em chegar, assim como o jornal, que atira-lhe ao rosto a evidência de que sua desgraça é só sua: o mundo continua a girar, os filhos crescem a despeito de sua vontade e a vida segue acontecendo lá fora. Em paralelo, o roteiro de Wells mostra o drama, esse, sim, trágico, de Phil Woodward, uma raposa velha demais para lançar-se a novas caçadas; se Walker ainda conta com a salvaguarda e o respeito de Maggie, a esposa vivida por Rosemarie DeWitt, o personagem de Chris Cooper, meio vilanesco, mas nenhum psicopata, entrega-se à cornucópia de solidão e tristeza que o aniquila. Como se deu com tanta gente numa página da história do capitalismo que sempre ameaça ser escrita mais uma vez.
Filme: A Grande Virada
Direção: John Wells
Ano: 2010
Gêneros: Drama
Nota: 8/10