Na Netflix, a impressionante história da ex-coelhinha da Playboy que teve uma ascensão meteórica e uma morte trágica Divulgação / Netflix

Na Netflix, a impressionante história da ex-coelhinha da Playboy que teve uma ascensão meteórica e uma morte trágica

A trajetória de Vickie Lynn Hogan até a persona pela qual ficou internacionalmente conhecida foi tão breve quanto funesta. A garota pobre, rechonchuda, morena, alta e solitária de Mexia, no Texas — síntese equivocada de como os Estados Unidos passaram a ser vistos por grande parte dos cidadãos comuns pelo mundo —, encarnava precisamente essa imagem (e não gostava nem um pouco disso). Anna Nicole Smith ainda clama por atenção, findos dezesseis anos de sua morte, a começar pelo título do documentário da talentosa Ursula Macfarlane, hábil em enaltecer a figura de sua biografada como ela voltou a querer ser conhecida depois de subir de modo vertiginoso sem saber muito bem para onde nem por quê, aos olhos dos eternos  cafajestes que cercam mulheres como ela e, claro, da onipresente imprensa marrom, sempre ávida dos escândalos que, cedo ou tarde, degringolam nos infortúnios que não podem remediar.

Diferentemente do que se pode considerar à primeira vista, “Anna Nicole Smith: Vocês Não Me Conhecem” refuta de maneira categórica o argumento de que o jornalismo de celebridades — ainda mais invasivo que na década e meia desde a morte da ex-coelhinha da Playboy e ex-garçonete de uma unidade do Krispy Fried Chicken de Mexia, onde trabalhou por quatro anos — é o grande responsável pela morte de Smith e a partir do segundo ato envereda com rigor na investigação da ciranda macabra em que se transforma a vida da modelo, por sua própria culpa —, daí vindo a lume uma pletora de tipos entre interesseiros e perigosos que, por evidente, jogaram sua pá de terra na sepultura da nova Marilyn Monroe (1926-1962), como chegou a ser tachada, sem muita razão. Smith emulava a aura de Monroe, sem dúvida — a origem modesta; a família desajustada; o cabelo escuro; incongruente com pseudoideais de beleza e sensualidade; as curvas, adquiridas só depois dos quinze anos; e, claro, o nome trocado —, mas com pouco, muito pouco da versatilidade artística de Norma Jean, metamorfoseada em vocação e, ao custo de paciência monástica e subserviência draconiana, em talento. O destino jamais chegou a regalar Vickie Lynn com seu Arthur Miller (1915-2005), justiça se lhe faça; contudo, é desonesto, para dizer o mínimo, quem afirma que Smith foi uma vítima, seja lá de quem for — quiçá de si mesma, mas quem não é?

A bela trilha de Jessica Jones pontua depoimentos como os de Annie Leibovitz, autora de alguns dos muitos editoriais de Smith para a Playboy, a “revista dos sonhos”, dos seus sonhos, os sonhos que conseguiu realizar ao longo de seus 39 anos, ou menos, em se excluindo o antes e o depois da fama meteórica — a esse propósito, o corte final peca pela falta de legendas que identifiquem os entrevistados. Ao cabo de uma retrospectiva por momentos nada gloriosos de sua protagonista, Macfarlane mistura a carreira de Smith a sua intimidade (até porque as duas estão sempre muito próximas); foi assim que ela conheceu Howard J. Marshall (1905-1995), o magnata do petróleo que a despojou aos 89 anos. A diretora é capaz de colocar a nu os aspectos muito peculiares de um casamento tão exótico, abominável para muitos, fazendo questão de destacar o carinho que tinham um pelo outro — carinho, não amor, mas ainda que nem isso houvesse, o problema seria só deles. Marshall e sua “dama adorável” não tinham propriamente uma vida em comum — os trechos dedicados a retratar a união do bilionário e sua ninfa (só para ele, porque Smith era já quase uma balzaquiana) são ilustrados com telefonemas em que a esposa atende o marido sonolenta, com a voz embargada, depois de passar a noite em lugar incerto, e mostra-se desconfortável com a patrulha —, e esse foi o trunfo de que Everett Pierce (1939-2006), o segundo dos dois filhos de Marshall, se valeu para contestar nos tribunais o direito da madrasta à herança do pai. Essa batalha jurídica arrastou-se por mais de duas décadas, até 2018; Pierce morrera doze anos antes, quatro meses depois de Smith.

A exemplo de Conceição, a moça desvalida que passa a conhecer o que a high society tem a proporcionar-lhe de melhor — sem atentar para o óbvio detalhe de que faz também suas cobranças, quase sempre desproporcionais —, Anna Nicole chega ao fim de sua vida louca e breve disposta a trocar seu castelo de areia pelos chinelos surrados de Vickie Lynn. Mas como a musa de Jair Amorim (1915-1993) e Dunga (1907-1991) cantada por Cauby Peixoto (1931-2016) no grande sucesso de 1956, todos permanecem a enxergá-la sem vê-la de fato. Vickie Lynn está morta e ninguém se lembra dos tantos dramas que só ela mesma pôde sentir, como o fim igualmente hediondo do filho, Daniel (1986-2006), aos vinte anos, em circunstâncias muito semelhantes às que selaram o destino de sua mãe; quanto a Anna Nicole, essa nunca existiu.


Filme: Anna Nicole Smith: Vocês Não Me Conhecem
Direção: Ursula Macfarlane
Ano: 2023
Gêneros: Documentário/Biografia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.