Aos poucos e a custo, a Índia vai dobrando as imposições culturais que vão surgindo ninguém sabe exatamente como, mas que não tardam a se cristalizar e na carne e no espírito de seu povo, ganhando uma aura de verdade absoluta e inconteste que não pode ser desafiada jamais, sob pena de maldições para além deste plano. “O Caso das Jacas Perdidas” foi o expediente entre irônico e satírico que Yashowardhan Mishra encontrou para castigar os costumes e fazer algumas boas provocações sobre absurdos que seguem ocorrendo em seu país, aos olhos do cidadão comum, e, por óbvio, com a aquiescência dos poderosos da vez, omissos e corruptos. Nada mau para o primeiro longa de um diretor elegante, cujo nonsense não tem qualquer ponto de contato com a vulgaridade e a presunção.
Mishra abre seu filme com um plano geral em contra-plongée pelo qual mostra uma mansão isolada misturando-se à savana da zona rural de Moba, nordeste da Índia. Em frente à casa, um homem toma banho com a ajuda de outro até que o celular toca ao som do remix de “Lalla Lalli”, do DJ Heeru. Alguém marca um encontro com ele, na barraca Jhalia Chaat, e enquanto esse tipo suspeito conclui sua ablução, do outro lado da cidade a policial Mahima Basor prepara-se para botar as mãos no delinquente mais perigoso das cercanias, autor de setenta estupros (ou seriam dezessete), doze homicídios e 36 roubos (ou talvez dez a menos). O roteiro do diretor e de seu pai, Ashok, duas vezes vencedor do Festival Internacional de Cinema da Índia, o IFFI, vai desdobrando-se numa espiral de cenas burlescas que Sanya Malhotra e Govind Pandey seguram com galhardia, até que a história começa a entrar no absurdo do mote central, com direito a uma explanação minuciosa acerca das espécies de jacas disponíveis nas feiras livres da Índia, uma genuína instituição nacional. A menção reiterada à fruta esconde um segredo revelado na derradeira sequência, depois dos primeiros créditos, hilária com seus três talentosos e espontâneos atores; enquanto isso, a heroína vivida por Malhotra investiga o sumiço das duas jacas malaias de Vijay Raaz, o expositor interpretado por Munnalal Pateria, cada uma com cerca de quinze quilos, vendidas a 180 rúpias a unidade, ou pouco mais de 21 reais juntas.
Com delicadeza, Mishra não se furta a repisar de maneiras diversas tópicos como misoginia, aversão a estrangeiros e a pobreza abissal que parece uma chaga invencível na Índia — muito em face da desídia das autoridades —, pairando acima de tudo a vergonhosa política de castas. O diretor socorre-se de sua protagonista a fim de, do jeito que consegue, manifestar seu repúdio à perduração do sistema, espalhando pelo cenário cartazes com dizeres que encampam uma oposição desabrida a um Apartheid de dissolução ainda mais operoso do que o sul-africano, que distinguiu brancos de negros por força de lei entre 1948 e 1994. Mahima, nascida num estrato inferior, consegue tornar-se policial, mas não tem o mesmo sucesso com a família de Saurabh Dwivedi, o noivo, personagem de Anant Joshi — que, além do mais é seu subordinado. Malhotra é tão persuasiva que há momentos em que o público não se lembra de que esta é uma comédia, e até meio tola. Quanta filosofia pode haver por trás do riso.
Filme: O Caso das Jacas Perdidas
Direção: Yashowardhan Mishra
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Crime/Comédia
Nota: 8/10