Um dos filmes mais inteligentes, perturbadores e agonizantes da história do cinema está na Netflix Divulgação / Universal Pictures

Um dos filmes mais inteligentes, perturbadores e agonizantes da história do cinema está na Netflix

A cabeça do homem é tão vasta, tão indecifrável, tão cheia de seus perigosos meandros que é muito razoável a possibilidade de um qualquer perder-se na imensidão dos seus pensamentos que julga só seus. M. Night Shyamalan é um mestre na arte de revirar as plataformas mais inacessíveis da alma humana e em “Fragmentado”, o diretor encontra o argumento perfeito a fim de investigar pontos assombrosamente obscuros da personalidade de alguém que flutua entre a multidão que habita seu espírito atormentado e uma constituição desabridamente bestial, vulnerável tanto num cenário como no outro, descobrindo em si a força malévola que o ampara em seus desatinos, no fundo ansiando por um salvador, por quem tenha coragem o bastante para resgatá-lo da escuridão untuosa que eiva tudo de melancolia e doença, mas também acostumando a ser mais e mais senhor de um domínio sem limites e sem lei.

Para chegar a Kevin Wendell Crumb, o antagonista de onde brota um elenco à parte, Shyamalan elabora em seu roteiro a subtrama de uma garota deslocada, que vai ao aniversário da colega com quem não partilha nenhuma afinidade e desperta sem querer, mal-estares aparentemente irrelevantes. Casey Cooke, a garota-problema de Anya Taylor-Joy, parece gostar de ser a sombra nos poucos ambientes que frequenta, e o diretor reserva para ela a missão que passa a justificar o filme, que não seria necessária caso a festa acabasse mais tarde ou mais cedo ou se o pai de Claire Benoit, a patricinha bem-intencionada vivida por Haley Lu Richardson, tivesse estacionado o carro ou mais longe ou mais perto, ou ainda se não tivesse o hábito de aceitar favores de estranhos. Como a vida é feita das decisões que tomamos, não do que seria conveniente escolher, Kevin entra na história, reforçando a teoria de que a jornada de cada obedece a uma lógica muito particular; é esse movimento ambivalente e irregular que, afinal, dá algum sentido à vida triste da mocinha interpretada por Taylor-Joy.

Um James McAvoy intenso, maduro, pleno, equilibra-se sobre alguns dos desdobramentos do universo mental de seu antagonista — o texto do diretor-roteirista fala em 23 variações de temperamento, cada qual com suas idiossincrasias, seus medos, suas neuroses e ainda um lado menos denso, aspectos que compõem um todo coeso, malgrado, por óbvio, não se possa ter uma exposição detalhada de todas elas. Num trabalho filigranado e exaustivo ao corpo e ao espírito, McAvoy deixa vir à superfície Hedwig, uma menina de nove anos, entre doce e meio insolente e Barry, um nova-iorquino de trinta e poucos, meio afetado e escravo da moda, os dois, além dos demais 21, liderados por Dennis, o verdadeiro alter ego de Kevin, que mantém Casey, Claire e Marcia, de Jessica Sula, encerradas num quarto revestido de pedras. Shyamalan lança mão de todos os recursos que se lhe apresentam a fim de traçar um perfil da loucura sob pontos de vista os mais diversos; nesse ponto, Karen Fletcher, a psiquiatra idosa encarnada por Betty Buckley, representada a força que se imagina capaz de subjugar o facínora, mas o desfecho ratifica o que já se havia deslindado na abertura, e Kevin é vencido pelo único inimigo contra o qual nada pode.


Filme: Fragmentado
Direção: M. Night Shyamalan
Ano: 2016
Gêneros: Thriller/Terror
Nota: 9/10