Baseado em obra-prima de Don DeLillo, filme da Netflix vale cada milésimo de segundo do seu tempo Wilson Webb / Netflix

Baseado em obra-prima de Don DeLillo, filme da Netflix vale cada milésimo de segundo do seu tempo

A morte cai bem aos personagens de “Ruído Branco”, a nova comédia de absurdos de Noah Baumbach, um arguto observador da natureza humana no teatro do possível e, com mais ênfase, do impossível, da vida, sem que um e outro desses recortes colidam entre si ou interfiram no curso da eterna paranoia que define o homem. Baumbach reedita alguns dos elementos de que lançou mão no incensado “História de um Casamento”, a começar por seu ator principal. Adam Driver encabeça uma trama em que o mergulho no mais baixo do homem visto no filme de 2019 — uma adaptação arejada do sinistro bergmaniano de “Cenas de um Casamento” (1973) — continua a se fazer presente, mas encaixa-se à perfeição no cinismo imanente (e escrachado) de Don DeLillo, em cujo romance o texto do diretor se baseia.

A noção da vida como uma experiência plena, sempre marcada pelos episódios de enfrentamento que lhe conferem densidade, contornos dramáticos, potência, significado, enfim, e que se arranjam de forma mais ou menos célere à medida que encontramos um ambiente que convida à discussão de seus tantos raciocínios antagônicos, complementares numa espiral de avanços e retrocessos, negativas e afirmações, está, por óbvio, intrinsecamente vinculada à ideia e à prática da liberdade a que cada um jamais deixa de ter direito, imediatamente remontando ao surrado e incontornável livre-arbítrio, trampolim de onde o homem se lança para sua redenção ou seu calvário. Senhora das angústias mais profundas do homem, de onde emanam-lhe os sonhos mais doces e os mais amargos suplícios, a liberdade se nos apresenta sob maneiras as mais variegadas, contemplando justamente o que existe de mais encantador na condição humana, sua natureza assombrosamente plural, fonte de revelações e enganos, mistificação e verdade.

Existe algo de espantosamente profético num livro que, 38 anos atrás, falava de gente desesperada por segurança num planeta cuja atmosfera se rendia à química de toxinas após um desastre industrial. Como um chefe de família exemplar em tempos de pandemias, Jack Gladney, o professor universitário vivido por Driver, passa a dedicar-se ao que se torna a missão de sua vida: buscar abrigo para a mulher, Babbette, da atriz e diretora Greta Gerwig, e a numerosa prole, com a primogênita Denise, interpretada com toda a graça por Raffey Cassidy, servindo como uma espécie de oráculo aos pais — e por extensão à humanidade, dia a dia mais falta de um norte, de parâmetros, de noções tediosamente básicas a respeito de liberdade, consciência ambiental (o que poder-se-ia traduzir pela ubíqua sustentabilidade de hoje), um progresso que assista a todos e modelos econômicos menos excludentes. Do segundo para o terceiro ato, Baumbach descortina uma guinada em que um tal comprimido de nome Dylar conta muito dos segredos por trás do relacionamento entre Jack e Babbette, muito mais aterrorizantes que os venenos e os vírus que o homem e a natureza criam.

Na disputa da morte contra a vida — inglória e ditada pela monotonia, porque tem sempre por vencedora aquela sobre esta —, flagramo-nos numa situação especialmente difícil conforme percebemos o quão melancólico pode ser estar num mundo tão vulnerável a nossa cruel negligência, o que termina por acarretar uma situação bizarramente curiosa. O gênero humano parece não se importar com a evidência inescapável de que é apenas a peça quase invisível de um mecanismo gigantesco, que pode continuar sem ele, por mais que admiti-lo não convenha à prepotência atávica do ser humano. Ninguém pode se dizer a salvo da maldade invencível dos tantos lobos em pele de cordeiro que nos encurralam em circunstâncias entre absurdas e perigosas, farejando o sangue quente e doce de suas vítimas por baixo da pele empapada de suor e pânico, menos por desconhecer as intenções monstruosas de seus algozes que pela revolta de ter empenhado sua confiança a um inimigo oculto sob o frágil manto da cordialidade, e assim mesmo seguimos dando azo à destruição de tudo, menosprezando o grito das evidências, pairando acima do chão da realidade que pavimenta a jornada de toda criatura. Esse som abafado que parece tranquilizar espíritos irrequietos só o que faz é empurrar-nos com toda a violência no abismo de conformismo e egolatria que nos ensurdece aos apelos e às urgências do outro. Sem que lembremo-nos de que também somos o outro para muita gente.


Filme: Ruído Branco
Direção: Noah Baumbach
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Comédia/Aventura
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.