Em maior ou menor intensidade, estamos todos — homens e mulheres; crianças e adultos; jovens e velhos — irremediavelmente presos na teia imensa que nos liga e torna-nos dependentes uns dos outros, até que movimentos contrários ao nosso desejo começam a agir com força cada vez mais incontrolável e atiram-nos aos limbos particulares aos quais nos apegamos. “Em Três Atos” fala a todo instante das limitações da natureza humana ao longo da vida, por mais que só as admitamos (e a custo), depois de um tempo em que a finitude é mesmo uma evidência. Entretanto, o trabalho de Lúcia Murat, tão sucinto quanto tocante, serve como a preparação à morte que todos — homens e mulheres; crianças e adultos; jovens e, claro, velhos — devemos ir tornando cada vez menos malsã, menos inorgânica, menos absurda, uma vez que, querendo-se ou não, a vida e a morte são como duas dançarinas num baile sem fim, mesmo que, rancorosas e meio cansadas uma da outra em muitas circunstâncias, não se aguentem de vontade de atrasar a evolução em um mísero segundo e, destarte, obter suas pequenas vinganças.
O roteiro de Murat mostra uma rua de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro num plano geral. Quando a edição de Mair Tavares e Marih Oliveira fecha o ângulo, vê-se uma bailarina solitária numa sala de grandes janelas encenando passos ao som do prelúdio de “Tristão e Isolda” (1859), do compositor erudito alemão Richard Wagner (1813-1883). A música para e recomeça, conferindo uma prévia do que a diretora-roteirista tem em mente, e na sequência, uma tela negra anuncia o primeiro dos três atos expostos no título, O Corpo. Esses três atos tomam por referência o espetáculo “Qualquer Coisa a Gente Muda” (2010), do coreógrafo João Saldanha, mas, por óbvio, remontam também às três principais etapas da vida — infância, mocidade e velhice —, introduzindo com parcimônia fragmentos de “A Velhice” (1970) e “Uma Morte Muito Suave” (1964), dois dos mais célebres trabalhos de Simone de Beauvoir (1908-1986) a versar sobre o passar dos anos, o roldão do existir, a lenta decrepitude do ser humano, eternamente necessitado da ajuda dos outros. Angel Vianna, então aos 87 anos, traduz em movimento nas notas da quarta das ricercate do húngaro György Ligeti (1923-2006), conjunto de onze peças para piano difundido entre o final do Renascimento e o início do Barroco, no século 17. Se cabe a Vianna, junto com Maria Alice Poppe, uma de suas ex-alunas, incorporar o que pode haver de balanço e gestos ora calculados, ora quase convulsos na literatura memorialista beauvoiriana, duas grandes atrizes também personificam suas deambulações na transição do primeiro para o segundo ato, ou seja, do Corpo para a Morte.
Nathalia Timberg e Andréa Beltrão dividem a cena dando vida à Beauvoir na meia-idade e à Beauvoir idosa, cada qual dizendo lindamente pensamentos da autora no que diz respeito ao temor da mudança, à função da escrita, essa atividade mágica e traiçoeira por meio da qual mantém-se vivo o passado, mas também se o congela, se o mumifica. Murat lança mão de um mecanismo bastante engenhoso a fim de extrair tudo quanto o talento singular de Timberg e Beltrão tem a oferecer ao público, e logo fica claro que as intérpretes desenvolvem outro filme em paralelo ao original, com esta na pele de Beauvoir e a primeira vivendo sua mãe, sucumbindo à velhice e à morte, conforme registrou em “Uma Morte Muito Suave”. Chega, então, a hora da Despedida, o segmento derradeiro, quando a câmera vai com as duas ao cemitério São João Batista, também em Botafogo, a necrópole onde está sepultado o corpo da pintora Sarah Vilela de Figueiredo (1903-1955), cuja lápide serve de cenário para uma das sequências mais comoventes do filme, quando o sol não deixa de brilhar, mas a sombria noite chega de toda forma.
A vida é mesmo o sonho longo, aflitivo, entrecortado, que maltrata o descanso de quem dorme e tenta, em vão, forjar aquelas imagens a seu talante, como o palhaço anoso que cantarola um samba-canção na iminência do fim de “Entre Três Atos”. Se a vetustez é um pacto de silêncio cínico com a sociedade, que a repele com toda a força porque nela já não sobra mais quase nada de físico, o morrer é a única chance de felicidade plena para o gênero humano. A morte é só uma outra coreografia.
Filme: Em Três Atos
Direção: Lúcia Murat
Ano: 2015
Gênero: Docudrama
Nota: 9/10