Bula de Livro: Escute as Feras, de Nastassja Martin

Bula de Livro: Escute as Feras, de Nastassja Martin

Li “Escute as Feras”, de Nastassja Martin, e gostei. Na verdade, gostei bastante. Não perdi o sono, mas quase. Sabe aquela velha piada, uma espécie de spoiler que nos contam quando decidimos ler um livro ou assistir a um filme, quando alguém diz: “Ela morre no final?” Aqui não funciona! Nástia, a narradora, morre no começo! Não é a morte física, mas a morte como um símbolo de transformação.

Nastassja Martin, autora desta autoficção, é Nástia, uma mulher que enfrentou um urso na Península de Kamtchátka, nos confins do mundo, como ela mesma diz, e acaba com o rosto dilacerado e sem parte de sua mandíbula. Desse incidente nasce uma trajetória de recuperação, em amplos sentidos. Nastassja Martin conta o confronto com a fera, em seu habitat natural, no lugar de uma beleza rústica e sublime, sua tragédia pessoal e os detalhes de todas as agruras hospitalares e médicas para reaver seu rosto, com muita dor e angústia, numa descrição introspectiva, profundamente sombria e inspirada. O livro tem em seu início a cena terrível dos espólios de uma batalha entre a humana e a besta, que deixa marcas profundas nas duas. “Os sons que capto são amplificados, escuto a fera, eu sou a fera.”

Escute as Feras
Escute as Feras (Editora 34, 112 páginas)

Nástia foi marcada pelo urso, é “aquela que vive entre dois mundos”. Nastinka, seu apelido, é miêdka, na língua Even. É, ainda, aquela que sobreviveu ao “encontro” e, após, tornou-se metade humana e metade urso. Ela é agora o habitat do urso. Para além de ter que se curar e se acostumar com as cicatrizes, resultado da luta colossal, ela quer imprimir a mística na sua vida e entender como é possível a mudança radical do seu ser e voltar à mulher normal de antes, para os outros. A antropóloga, que viveu tudo isso na vida real, explora sua memória, seus sonhos, sua experiência e escreve. Conta. Narra. Tudo isso em frases curtas e objetivas. Elaborando cenas em detalhes. Descreve eventos, situações e pessoas. Tudo e todos que, de uma forma ou de outra, fazem parte da saga heroica que precede e sucede a disputa com seu nêmesis: o urso.

Esse estilo econômico e que, em alguns momentos, apenas usa o verbo no infinitivo, ou frases nada lapidadas, é que incomoda um pouco. É estilo, mas é pobre! Mas tudo está claro. A mensagem aqui é mais importante. Assim como na sua literatura: direta, crua e eficaz, Nástia é corajosa para revisitar a tragédia que sofreu. Sem ressalvas, falar do seu encontro com o urso, reviver, na memória, a dor que sofreu, é outra batalha. Nastassja Martin sabe que tudo isso tem relevância: “Um urso e uma mulher são algo grande demais como acontecimento”.

A Fênix grega sempre é evocada nessas literaturas de reconstrução. Autobiográfica, a história de Nástia fascina, comove e educa, pois “tudo é permitido quando nascemos das próprias cinzas”.


Livro: Escute as Feras
Autor: Nastassja Martin
Tradução: Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann
Páginas: 112 páginas
Editora: Editora 34
Nota: 8,5/10

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.