O estranhamento de todas as coisas, o desconforto frente ao mundo e a si mesmo, a vontade de transformar tudo quanto já existe, sem muita ideia de por onde começar e, o principal, de que jeito, são particularidades daquela etapa da vida em que o sonho tem muito mais valor do que o concreto, o real e o possível. “Dezessete”, o drama que registra o difícil amadurecimento de um garoto espanhol, nota essa desarmonia entre intenção e a vida como ela é, mas o diretor Daniel Sánchez Arévalo tem seus truques para tornar a abordagem bem menos sombria. Sem enveredar para pregações nesse ou naquele viés, Arévalo deixa fluir um enredo caudaloso, mas orgânico, que pode muito bem se abater sobre o cotidiano da mais honrada das famílias.
Aos dezessete anos, Héctor é um exemplo do que as ditas unidades de ressocialização, muitas apenas depósitos de gente, podem fazer com meninos verdes como ele. Desde cedo, o personagem de Biel Montoro vivencia o desprezo da sociedade, e em casa também não encontra abrigo contra suas inquietações. Patologicamente solitário, Héctor é submetido às provocações dos outros internos — que o acossam justamente porque ele leva a sério a punição da juíza que o condenara por furto qualificado a uma loja de departamentos, para onde se deslocara numa moto, também roubada, embora fosse movido pela vontade nobre de melhorar as condições da avó, Cuca, de Lola Cordón, que padece de uma doença terminal —, e os monitores nunca se apercebem disso. Héctor devora o código penal da Espanha, “para aprender a diferença entre certo e errado”, conforme lhe sugerira a magistrada, e a alcunha de Advogado pega, como também poderia vingar o epíteto de Fujão, uma vez que, à primeira oportunidade, como um artilheiro em fim de campeonato, ele avança pelo campo em que os outros adolescentes jogam futebol, finta os guardas e se atira sobre a grade. Apanham-no sempre, e nessas circunstâncias, o personagem de Montoro é conduzido ao quarto para esperar a punição devida; no momento em que, finalmente, conquista sua tão ansiada liberdade, ainda que por meios tortos, e se reencontra com o irmão mais velho, Ismael, vivido por Nacho Sánchez, os dois têm a chance rara de fazer um balanço acerca das infaustas transformações que já sofreram, malgrado tenham vivido ainda tão pouco. A premissa lateral a tomar a história numa boa guinada do roteiro de Arévalo, que sabe muito bem como valer-se da deixa a fim de mostrar seus personagens numa saga de autoconhecimento e compaixão mútua, serve para que Héctor tente recuperar Ovelha, o vira-lata a quem se afeiçoara durante uma atividade educativa no reformatório, seu verdadeiro (e único) amigo.
Como não poderia ser de outro modo, a partir do segundo ato, “Dezessete” se estende sobre as dificuldades do relacionamento entre os irmãos, ampliando o corte para questões ainda incômodas, como onde enterrar Cuca depois que ela sucumbir a uma velhice fustigada pela má saúde, porque o aluguel do jazigo da família não é pago há mais de um ano. A promessa de felicidade do desfecho é pouco mais que ilusória, com Ismael e Héctor seguindo cada qual seu caminho novamente, e sem Ovelha. Mas a vida é, em suma, isso mesmo: um onipresente desencontro em meio a instantes de congraçamento.
Filme: Dezessete
Direção: Daniel Sánchez Arévalo
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Comédia/Coming-of-age
Nota: 9/10