Marçal Aquino, nova vítima da censura moralista brasileira

Marçal Aquino, nova vítima da censura moralista brasileira

Inexplicavelmente, os gestores da Universidade de Rio Verde (Unirv), na região Sudoeste de Goiás, retiraram o romance “Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios”, do escritor Marçal Aquino, da lista de leitura obrigatória de seu vestibular. Essa exclusão aconteceu após o deputado federal Gustavo Gayer (PL) publicar vídeo em que acusa o livro de ser “conteúdo literário pornográfico”.

Temo que sua excelência excelentíssima deputado Gayer, reconhecido professor de inglês de Goiânia, sabe que não é necessário ser bacharelado em literatura para opinar sobre obras literárias. A opinião é livre. Assim como o gosto e a preferência. Contudo, quando se pretende influenciar uma coletividade acerca dos méritos ou deméritos de uma obra de arte, é necessário que seja feita uma análise apurada. Da obra como um todo, não fatiando em partes.

Neste sentido, os trechos selecionados pelo mais do que excelente deputado em seu vídeo estão obviamente descontextualizados. “Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios” possui uma narrativa forte, mas de profundo e complexo conteúdo humano. É uma obra literária, na forma e no conteúdo, de incontestável grandeza estética. Quem leu o livro de Marçal Aquino sabe disso. Diferente de outras pessoas com quem falei, tenho certeza de que o excelentíssimo deputado leu a obra que pretendeu criticar em sua completude. Não faria sentido arvorar-se a fazer acusações tão sérias se não tivesse lido. Não esperaria nada menos de um representante de nosso poder legislativo federal. Caçar bruxas, em todo caso, saiu de moda.  

Até porque seria possível fazer exercício semelhante até mesmo com textos bíblicos como “O Cântico dos Cânticos”, célebre por suas passagens de forte teor erótico. O excelente deputado pode justificar que não se pode comparar a linguagem poética de um com o tom explícito do outro. Acho duvidoso, no mínimo controverso. Imagino que para um cristão da antiguidade ou do medievo não faria muita diferença. As sugestões de imagens estão lá, apesar de serem realizadas em estilos diferentes. Não preciso explicar que isso é trabalho de linguagem, algo que transforma redações escolares em literatura propriamente dita. Todo professor sabe disso, incluindo professores de línguas estrangeiras.

Por falar em língua estrangeira, especificamente a língua inglesa, especialidade do vastamente excelente deputado Gayer, recomendo a leitura no original do clássico “Lolita”, de Nabokov; obviamente um tratado sobre as profundezas da alma humana, muito mais do que apenas a história de um pedófilo maldito. Tentaram censurar “Lolita”, mas a excelência artística da obra prevaleceu.

Recomendo também “Trópico de Câncer” e “Trópico de Capricórnio”, de Henry Miller, e a obra completa do velho safado Charles Bukowski. Talvez no início pode ser um pouco chocante, mas, com o tempo e a experiência percebe-se que a grande literatura precisa retirar o leitor de sua zona de conforto. Ler sem profundidade não é diferente de um ato mecânico.

Quem lê sem profundidade corre o sério risco de considerar o maravilhoso “Cântico dos Cânticos” como conteúdo literário pornográfico. Pessoas excelentes não fazem isso.