Digno de Oscar, o filme subestimado e surpreendente que está na Netflix e você não assistiu Divulgação / Netflix

Digno de Oscar, o filme subestimado e surpreendente que está na Netflix e você não assistiu

Eventos históricos como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) continuam a oferecer infinitas possibilidades de desdobramento, e as elaboradas pelo belga Sven Huybrechts em “Torpedo: U-235” são sem dúvida muito particulares. O diretor lança um olhar incomodamente realista para o grupo de heróis que quer detalhar, sem abrir a guarda para romanceações ingênuas. Esses personagens são maltrapilhos, grosseiros, sujos, e quanto mais Huybrechts se aprofunda em seu texto, escrito junto com Johan Horemans, mais robusta a certeza de que o espaço para a glória há de se restringir até o perigoso limite do desalento, momento, como que por encanto, a narrativa vai rumando para a conclusão redentora, sem que ninguém tenha razão para queixar-se de nada. Entre um e outro ponto, há margem para várias ótimas cenas, em que a tônica é mesmo o andamento farsesco escolhido pelo diretor, contraste que nunca deixa de surpreender.

Um raio de luz consegue se fazer notar antes que o rosto de um oficial nazista seja empurrado contra a água límpida de um cocho. Esta cena, claro, não chega a ser a mais forte numa produção sobre uma das maiores violências já perpetradas à humanidade; entretanto, a mistura de singeleza e psicopatia que o gesto encerra presta-se a forjar o espírito de muito do que se vai assistir dali por diante, quando Huybrechts enfronha-se no modo de trabalho dos subordinados de Hitler — tanto que, ao cabo das imagens que situam o espectador no argumento central do filme, ela volta ao leito da narrativa. No gabinete de guerra montado em Londres, em 1941, Churchill, o primeiro-ministro inglês quando da escalada ofensiva contra o ditador da Alemanha, nunca aparece; no seu lugar, tomam o quadro os burocratas que tentam coordenar um grupo de mercenários num avanço silêncio pelo Atlântico, do Congo Belga para os Estados Unidos, a bordo de um submarino alemão. A carga, a partida de urânio a que o título se refere, seria despachada para o alto comando germânico a fim de que se desenvolvesse uma arma de destruição em massa para conferir ainda mais poder de barganha a Hitler e sua ideologia hedionda — e ninguém tem a menor dúvida de que o senhor diabólico do mundo não hesitaria nem por um instante em usá-la se contrariado. Agora, o que a tripulação liderada por dois capitães precisa é se desdobrar para que o urânio chegue a tempo de conter a sanha do exército alemão, que parecem sentir que alguma coisa desandou com seu espólio.

Stan, o líder dos guerrilheiros belgas, está sempre, por óbvio, equilibrando-se para não sucumbir à loucura, tanto mais porque nao sabe operar a embarcação (!) e depende da ajuda de Franz Jäger, um oficial hitlerista capturado em sua última missão. Koen De Bouw e Thure Riefenstein protagonizam bons momentos em que o filme cresce como libelo humanista, malgrado Huybrechts não lhes dê toda a ênfase que mereciam e prefira concentrar-se mesmo nas horas de desespero atravessadas pelos tripulantes. O antirromance de Nadine e Filip, vividos por Ella-June Henrard e Joren Seldeslachts, bem aproveitados, proporciona o respiro cômico possível, mas são mesmo os lances dramáticos envolvendo os personagens de De Bouw e Robrecht Vanden Thorenna pele de Werner Van Pragg, um talento do futebol, judeu, que vai combater na frente paramilitar da guerra, que fazem de “Torpedo: U-235” um trabalho sem par na história do cinema recente. Sem subgêneros.


Filme: Torpedo: U-235
Direção: Sven Huybrechts
Ano: 2019
Gêneros: Ação/Guerra
Nota: 9/10