O detetive Thomas Blin pode ter sido um Frank Serpico algum dia. O personagem vivido por Franck Gastambide em “Um Dia Difícil” quiçá também encarnasse, como o protagonista de Al Pacino no filme de Sidney Lumet (1924-2011), o avesso do sistema, mas por recear ser neutralizado pela banda podre — e convenientemente entregue a suas seduções —, começa a pautar sua conduta pelo cinismo pragmático de minimizar os efeitos de qualquer possível contratempo num ofício cheio de altos e baixos, em que uma decisão errada num momento de tensão extrema implica mudanças severas — e quiçá irreversíveis — em sua rotina, em seus hábitos, em sua saúde, em sua vida. Sempre se pode fazer a coisa certa, de acordo com o que se assiste no longa de Lumet, cujo roteiro de Waldo Salt (1914-1987) e Norman Wexler (1926-1999) é inspirado no livro homônimo de Peter Maas (1929-2001), em que pese Serpico experimentar toda sorte de perseguição justamente por sua probidade. Blin, por seu turno, não tem o menor interesse em emular a falsa santidade do tira mostrado por Lumet, falsa porque Serpico não é nada mais que um homem zeloso de suas funções que deseja cumprir o que dele espera a sociedade sem desvios de nenhuma ordem. Aqui, não há lugar para mártires.
O tema é tão vasto que parece nunca se esgotar e vai se sucedendo na centenária história do cinema. “Um Dia Difícil” já fora levado às telas, em 2014, pelo diretor sul-coreano Kim Seong-hun, e a releitura do francês Régis Blondeau reapresenta tudo o que o colega já expusera oito anos antes, introduzindo as adaptações temporais necessárias. Neste filme como no outro, o investigador de Gastambide se vê presa de uma emboscada que ele mesmo concebera. Dirigindo para o funeral da mãe, Blin atropela um homem e, claro, pensa, como qualquer um, que as lesões do acidente é que foram a causa dessa outra morte em seu caminho. Fica cada vez mais claro que atropelar a lei não se constitui uma grande dificuldade para ele, e o roteiro, de Blondeau e Julien Colombani, frisa sua experiência em transportar cadáveres. O diretor e seu corroteirista lançam mão de um humor macabro ora sutil, ora desabrido a fim de cravar o absurdo próprio desses momentos.
Esse arco não é tão bem trabalhado quanto deveria e o espectador é obrigado a se morder de curiosidade ao fomentar especulações sobre a razão da grande mágoa do policial por sua mãe, cujo velório reúne uns poucos gatos-pingados, aí incluída a irmã de Blin, sua filha pequena e a equipe do cerimonial. Contando com a licença poética (e a boa vontade da audiência), entre sua chegada e o momento da saída do corpo, o personagem de Gastambide fora capaz de pensar numa maneira, por sinal muito engenhosa, de se livrar do outro cadáver, o do homem que crê ter matado e que permanece no porta-malas de sua BMW cinza, e, como já se imaginava, é por aí que decerto se vai alcançar o coração do enredo. Também se recomenda observar o malabarismo de Blin pensando no melhor destino para o morto que, como se vai ver numa guinada previsível, requentada da primeira versão, não se revela uma ideia assim tão genial, principalmente por causa de uma imperícia pueril do detetive-bandido.
Rir do infortúnio de Blin faz parte do pacote numa trama como a de “Um Dia Difícil”, até engenhosa em manipular os sentimentos do público, que fica entre perdido, achando ter descoberto as intenções vis de Blin e seus planos para engambelar seus superiores (entre os quais seu chefe imediato, Marc, do ótimo Michaël Abiteboul, que termina mal ao advertir o subalterno para que tome jeito); revoltado, por ver que, como em certas plagas abaixo do Equador, ele sempre arruma um jeitinho de alongar seu tempo na corporação; e conformado, quiçá até dominado pela certeza de que é deveras inútil torcer para que seja pego, e, dessa forma, alia-se ao malandro, que cresce exatamente graças a esse inesperado apoio. Ainda que na mira do comissário Antoine Marelli, igualmente metido em atividades extralegais e com quem topa sem querer — boa performance de Simon Abkarian já na iminência do desfecho —, Blin consegue dar a volta por cima. O embate entre os dois, briga de cachorro grande, apesar de um dos cães sempre apresentar os dentes mais afiados que o outro, merece a atenção que o todo dispensa.
Por mais reservas que o filme incuta, há que se louvar o talento de Régis Blondeau em imprimir a seu trabalho a natureza do absurdo, um recorte da superfície do que seu anti-herói é no fundo. A história oscila entre o ridículo e o truculento, este predominando sobre aquele, que também se impõe. O equilíbrio dessas duas metades — irregulares, mas autônomas — é o que faz “Um Dia Difícil” não restar mero pastiche do antecessor, uma vez que exalta a hipocrisia e a negligência de quem teria o dever de espelhar a justiça. Blondeau não se acovarda diante de patrulhas, mas isso pode ser só uma modalidade torta de doutrinação. Esse mistério o filme não elucida.
Filme: Um Dia Difícil
Direção: Régis Blondeau
Ano: 2022
Gênero: Policial/Ação/Suspense
Nota: 7/10