O cinema da Espanha, além de colocar na praça filmes quase sempre irretocáveis, tem se caracterizado pela regularidade. Não se passa um ano, com ou sem pandemia, em que o público não se surpreenda com um lançamento da indústria cinematográfica do país, cada vez mais vigorosa não só por contar com vultoso investimento estatal, mas principalmente pela filosofia de reunir profissionais que não se permitem estagnar intelectualmente. “Viver Duas Vezes” é mais um exemplo do que pode o cinema quando cai em mãos zelosas.
O filme de María Ripoll, levado às telas em 2019, só peca num quesito. Pouco mais de cem minutos acaba sendo um tempo exíguo demais para apresentar o conflito central, ainda que o núcleo de personagens mais importantes se resuma a quatro, um casal de adultos orbitando pelos trinta e tantos anos, uma garota de dez ou onze e um homem de setenta, sendo que esses dois últimos é que de fato conduzem a narrativa — e dá gosto saber que algum dia Oscar Martínez possa ceder a coroa a um profissional a sua altura.
Dizer que Martínez é hoje não o grande, mas o maior nome do cinema espanhol é redundante. O Cidadão Ilustre (2016), dirigido por Gastón Duprat e Mariano Cohn, e uma homenagem livremente inspirada em sua biografia de argentino que faz a vida e conhece o sucesso na Espanha, contribuiu para que o veterano tenha se tornado mais conhecido, sobretudo entre as faixas mais tenras da audiência, e se não se tratasse de um dos melhores filmes de todos os tempos, essa sua característica já faria com que o trabalho de Duprat e Cohn tivesse valido a pena. É assombrosa a fina habilidade de Martínez de fazer com que um papel aparentemente frio, apagado, sem viço de pouco em pouco tome conta de toda a história, e posso garantir que a própria diretora tenha ficado perplexa com o corte final. Diferentemente do pomposo Daniel Mantovani da trama de 2016, cuja personalidade se faz notar desde logo, Emilio, apesar da ranzinzice caricata, é uma tela em branco. O professor aposentado de matemática “de universidade”, como ele faz questão de sublinhar, acaba por passar despercebido em muitos trechos de “Viver Duas Vezes”, e ao contrário do que tal inferência possa sugerir, isso não é demérito algum à performance do ator, muito pelo contrário, aliás. A grande beleza do tipo a que Martínez dá vida reside no fato de que Emilio, quiçá prenunciando o que lhe vai acontecer, prefira centrar esforços na sua meta maior, que resume a razão de ser do roteiro de María Mínguez.
Ripoll opta não por tirar seu protagonista de sua rotina a fim de explicar o que se passar em seu filme, mas trazer ao espectador as lembranças de um Emilio ainda garoto, às voltas com a descoberta do primeiro amor, convidá-lo a mergulhar nelas, auxiliada pela fotografia em baixa resolução, ligeiramente granulada, de Núria Roldos. A sequência, tão lacônica quanto cercada de poesia, antecede a efetiva introdução do protagonista, um velho tomando uma refeição no La Pilareta, o histórico café no coração de Valencia em que é chamado pelo nome e no qual todos conhecem suas manias, inclusive a de pedir o pão separado do tomate. O pão veio junto do tomate desta vez, porque Mario, o novo cozinheiro, que permanece incógnito, não fora avisado pela garçonete; Emílio, todavia, não reclama. Parece absorto em algum pensamento muito mais importante que manter cada sabor na sua devida ordem de desfrute, enquanto completa o desafio do sudoku, ou melhor, do quadrado mágico.
Como fica claro algumas cenas depois, o personagem de Martínez começa a padecer de um Alzheimer ainda latente, mas tenta esconder sua nova condição da filha, Julia, vivida por uma Inma Cuesta na plenitude de seu talento, que acaba por saber de tudo graças a um arranjo bem orquestrado por Mínguez. Mais uma vez, imagens de um Emilio adolescente são intercaladas entre a descoberta da doença e o encontro com Julia, o marido, Felipe, de Nacho López, e Blanca, a filha dos dois, neta de Emilio, brilhantemente trabalhada por Mafalda Carbonell. Em volta de uma mesa no almoço de domingo, vão se desvelando pequenas desavenças entre os comensais, em especial entre Blanca e o avô. Sujeito que sempre primou pela discrição, Emilio fica um tanto chocado pela forma artificialmente cortês com que todos o tratam, gentilezas que, por evidente, só se justificam porque está ali o que eles consideram um inválido, o que quer se queira ou não, remete à ideia da morte mais ou menos próxima. Bem, dizer que todos o tratam com essa desfaçatez é, na verdade, injusto; a personagem de Carbonell, portadora de uma deficiência motora na vida real, provoca o avô sugerindo que seu cérebro não esteja mais apto a responder a suas piadas, e Emilio não só devolve os insultos como também se autossatiriza. Sob essa atmosfera que pode parecer hostil, mas que só expõe as implicâncias de dois indivíduos que se amam de verdade, Emilio começa a elucubrar sobre o desejo de partir numa viagem à Navarra onde nasceu para tentar um reencontro com Margarita, vivida por Isabel Requena, a primeira namorada com quem subitamente começara a sonhar acordado.
Depois de algumas reviravoltas, antes acompanhado somente por Blanca, Emilio passa a poder contar também com a filha e o genro, ainda que o casamento deles esteja por um fio devido a uma aventura extraconjugal de Felipe. Ripoll converte seu filme num road movie cheio de momentos impagáveis, como quando os quatro patetas chegam à antiga casa em que Margarita passara a infância e, claro, ela já não mora mais lá. Quem os recebe é Angustias, interpretada por Mamen García, cujo talento empresta ao filme a leveza e a comicidade desbragada que lhe faltavam. Quando conseguem o endereço, não pelas mãos da atrapalhada Angustias, mas graças à ajuda de Blanca, num episódio quase improvável, voltam a Navarra para uma segunda tentativa e a mulher que Emilio encontra já não é mais Margarita.
Da mesma forma que em “O Cidadão Ilustre”, o personagem faz a pior escolha possível: ignorar todos os muitos sinais que a vida lhe dá e querer reviver uma existência que já não existe. Schopenhauerianamente desgraçado, o primeiro reencontro entre Emilio e Margarita cede lugar a um regresso ao passado, irreal, mas o possível, em que estão ambos novamente de volta aos dezessete, ou antes ainda, sem saber como passaram os mais de cinquenta anos sobressalentes. Mas eles já não têm importância nenhuma.
Filme: Viver Duas Vezes
Direção: María Ripoll
Ano: 2019
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10