Mais do que uma história de ação, filme na Netflix cria um mundo e vai te fascinar e perturbar por 115 minutos Divulgação / The Weinstein Company

Mais do que uma história de ação, filme na Netflix cria um mundo e vai te fascinar e perturbar por 115 minutos

“Os Infratores” é um filme requintado sobre gente boçal. Aqui, todo mundo tem um vínculo qualquer com as mais variegadas modalidades de crime, de extorsão a homicídio, passando por lesão corporal grave e, claro, o tráfico de bebidas alcoólicas, verdadeira praga durante o tempo em que vigeu a Lei Seca nos Estados Unidos, entre 17 de janeiro de 1920 e 5 de dezembro de 1933, banida com uma canetada do presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), acolhida pelo Congresso. A propósito, o efeito mais imediato da abolição da medida — um esforço um tanto irracional que visava ao freio de males colaterais da pobreza galopante que perdurava desde o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), como a violência doméstica e delitos de menor potencial ofensivo, como furtos e saques —, foi uma queda acelerada e constante no número de mortes em decorrência de beberagens fabricadas sem que se observassem critérios mínimos de higiene, para não mencionar a simples desídia de donos de alambiques clandestinos, que misturavam às preparações substâncias capazes de fazer a produção render, como a gasolina, indetectáveis aos sentidos do consumidor médio, mas letais assim mesmo.

Tomando esse fragmento da História americana por base, o australiano John Hillcoat fez de “Os Infratores” um enredo invulgar. Seis anos antes, “A Proposta”, também de sua lavra, tinha por eixo um trio de irmãos marginais que, movidos por uma pulsão de vida, enfrentava um homem poderoso, determinados a fazer com que a lei se cumprisse, e as coincidências não param por aí. Assim como em 2006, no longa de 2012, Hillcoat se vale da sociedade com o músico Nick Cave, autor dos dois roteiros, e Guy Pearce, que rouba a cena nos dois filmes. Em “Os Infratores”, o diretor faz de seu malvado favorito um mocinho meio afetado — mas macho a valer — e oferece a Tom Hardy, Jason Clarke e Shia LaBeouf o status de coadjuvantes sem os quais a trama desandaria, compondo uma proposta lúdica onde esses personagens trocam de função sem nenhuma cerimônia. A trinca de brucutus formada, em grau decrescente, por Forrest, Howard e Jack Bondurant, que perto dos dois irmãos mais velhos não passa de uma mosca morta, se torna célebre ao peitar (e corromper) as autoridades do condado de Franklin, no oeste da Virgínia, engarrafando e distribuindo destilados de milho e de maçã durante a Lei Seca. Tudo corre em ouro sobre azul, com cada qual tocando a parte do empreendimento que lhe cabe, até que o agente Charley Rakes, de Pearce, membro do FBI, chega para acabar com a boa vida dos malandros.

Num desempenho pensado para trucidar estereótipos, Pearce dá vida a Rakes envergando ternos bem cortados, penteado à Valentino, cabelos tingidos de um negro medonho e, o principal, destilando boas maneiras, inclusive com aqueles com quem sabe que terá sérios problemas se estiver mesmo disposto a dar um fim aos agravos dos Bondurant. Esse é o momento em que “Os Infratores” decola, com Pearce imprimindo a um dos anti-heróis mais enigmáticos do cinema um espírito altivo oculto por trás de uma figura que sabe como ninguém se habituar à aridez de seu novo meio. Conforme o filme se desenrola — e a estampa hipnótica de Guy Pearce deixa —, vão se fazendo notar as presenças de Jessica Chastain, excepcionalmente bonita, como a ex-dançarina Maggie, que deixara o glamour das boates de Chicago em busca de uma vida mais pacata e se decepciona fragorosamente. O envolvimento de Maggie com o personagem de Hardy, de cujo bar passa a tomar conta, tempera os longos hiatos narrativos da história, que nunca perde o frescor ou a cadência, entretanto. Jack, por sua vez, se encanta com a beleza exótica de Bertha, a ingênua filha do pastor local, de quem só ousa aproximar-se depois que enriquece. A cena em que o personagem de LaBeouf a procura durante o culto denota a candura de outros tempos, em que os pés nus de uma moça eram capazes de provocar reações quase selvagens num garoto bem-comportado.

A guerra que se sucede, não exatamente entre bem e mal, mas que opõe lados que concorrem pela primazia de um direito que não têm, dá a dimensão do ódio que só o apetite voraz por poder, seja como for, é capaz de erigir e sustentar. Em “Os Infratores”, mais uma maravilha do cinema sobre chagas da América que nunca se fecham, John Hillcoat traz à cena reflexões sobre a natureza belicista e armamentista dos Estados Unidos, outrossim a tendência que certo estrato da sociedade daquele país desenvolveu quanto a se arvorar em paladina do bom, do belo e do justo. Se o grão de trigo não morre, nunca haverá de ser alimento, mas para isso é preciso que o sol tenha força para dissipar até as nuvens mais teimosas.


Filme: Os Infratores
Direção: John Hillcoat
Ano: 2012
Gênero: Drama/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.