Um dos mais belos (e premiados) filmes da história da Netflix Simone Florena / Netflix

Um dos mais belos (e premiados) filmes da história da Netflix

Poucos anos na história da civilização tiveram tanta importância como 1968. Manifestações estudantis se projetavam dos câmpi de universidades de todo o mundo para o resto da sociedade, balançando governos autoritários e o dito sistema com tal força que acabaram por derrubar uns e reordenar o outro. Essa atmosfera de sublevação frequente contra o estabelecido e a busca incessante por liberdade detonaram ao redor de todo o planeta a urgência de se tomar a natureza humana, o homem em sua configuração mais íntima e a vida ela mesma sob uma perspectiva diferente, nova, revolucionária. Mudar era preciso, e aí que começa “A Incrível História da Ilha das Rosas”. O conceito de micronações — experimentos sociológicos que visavam à instituição de territórios autônomos — foram ganhando cada vez mais força, com cada vez mais defensores, e esse argumento, muito mais afeto ao terreno da quimera, da utopia, da distopia, a uma apreciação mais ligeira, ganha o status de fantasia justamente por seu caráter inverossímil, tanto mais se se considera que tudo quanto se tem aqui é o recorte poetizar de um evento da vida real, em que o diretor Sydney Sibilia tem o condão de valorizar em seu trabalho a justaposição sempre absurda (à primeira vista) entre a realidade com que se é obrigado a lidar todo santo dia, goste-se ou não, aceite-se ou não, e aquela que se esqueceu de acontecer, que deveria, que poderia ter tomado forma numa altura qualquer da caminhada do homem pela Terra. No roteiro, escrito em parceria com Francesca Manieri, Sibilia deixa clara sua intenção de conduzir a história de um lado a outro, ora exaltando a coragem invulgar no temperamento de seu protagonista, ora assinalando sua inadequação social e mesmo seu presumido desequilíbrio mental.

Giorgio Rosa é um homem movido a sonho, por seus sonhos. O personagem central de “A Incrível História da Ilha das Rosas”, vivido por Elio Germano, é um engenheiro recém-formado que vai a Roma dirigindo o carro que ele mesmo fabricou para apresentá-lo como um projeto científico. Rosa é um gênio do design e da mecânica, sem dúvida, mas sua destreza com as questões que tocam ao sentimento é nenhuma. Sua visão de mundo excessivamente libertária, mas sempre cartesiana, o criva de problemas com as mulheres, ou melhor, com a mulher que lhe interessa. Gabriella, a encantadora personagem de Matilda De Angelis, enxerga nele apenas o visionário, o homem a frente do seu tempo — e um entusiasta patológico da necessidade de se fugir do mundo real, um lunático, enfim. Ter aceitado a carona que ele lhe oferecera, em seu automóvel exclusivo, mas sem registro, lhe custa uma passagem pela polícia, com direito a ficha criminal, o que decerto redundará em prejuízo em sua incipiente carreira de jurista. Esse é o limite. Ainda que o ame, Gabriella opta por ficar com Carlo, de Ascanio Balbo, um tipo muito mais estável — e muito mais tedioso.

Rosa considera levar a sério o conselho do pai, Ulisse, interpretado por Andrea Pennacchi, e ser um cara normal, como todo mundo tenta ser, com um emprego ordinário, como quase todo mundo tem. Ulisse sempre foi um humilde operário na fábrica de motocicletas de onde tirou o dinheiro para bancar os estudos — e a busca irracional do filho por igualdade entre os homens, liberdade de opinião, poesia no ramerrão da vida diária, essas besteiras — e não vê problema algum nisso, e muito menos em desejar tal sorte para Rosa. O personagem de Germano, como se um animal fora de seu hábitat, sente, com razão, que abdicar de sua maior qualidade, precisamente aquela que o torna único dentre todos os mortais, pode ser um salto no vazio, sem volta, uma manobra arriscada demais, para a qual não está pronto e em que não quer nem pensar. Sempre atento, outra das ramificações de seu instinto de sobrevivência a toda prova, o anúncio de uma companhia que monta plataformas de perfuração de petróleo em alto-mar lhe soa como a boa-nova de que seu delírio maior talvez não seja tão absurdo assim. Contando com o franco incentivo e o patrocínio desonesto do amigo Maurizio, vivido por Leonardo Lidi, Giorgio Rosa passa a se dedicar exclusivamente em construir um eirado no meio do oceano, quinhentos metros depois do fim da faixa litorânea correspondente à costa italiana, em Rimini. Uma território legalmente autônomo, portanto.

O mar sedia o anseio humano pela verdadeira independência, sem qualquer censura para o que quer que seja, desde os relatos sobre Simbá, o marinheiro de Bagdá que na Antiguidade cruzava os sete mares à cata de aventuras, por óbvio, mas também para fugir da obrigação de viver sob o tacão do califado abássida. A primeira noite no país que funda não é nada promissora para Rosa, que enfrenta a fúria da maré e é arremessado sem clemência por ondas gigantes. Antes de findar a tempestade e o alcançar a redentora bonança, quando o tempo firma e as águas serenam, Pietro, sobrevivente da tormenta, depara-se com aquele insólito porto seguro e atraca por ali mesmo. O personagem de Alberto Astorri é o primeiro habitante daquela terra encantada, que depois recebe o nome de Ilha das Rosas, e passa a abrigar também Rudy, interpretado por Tom Wlaschiha, um desertor do exército alemão sem cidadania, e, por conseguinte, um apátrida, e a garçonete Franca, de Violetta Zironi, que ao querer ter seu filho mesmo sem ser casada evoca outra das muitas questões filosófico-morais da trama. Não demora para que a ilha toda vire um desfile sem trégua de gente bronzeada num êxtase infinito, o que aviva a cólera e o medo das autoridades italianas, encarnadas por Fabrizio Bentivoglio e Luca Zingaretti, que têm de recorrer à Organização das Nações Unidas (ONU) para reaver o mando sobre toda a extensão do país, sem deixar de fora aquele diminuto quadrilátero ultramarino.

Sibilia não se preocupa muito em esclarecer com detalhes de que maneira Rosa e Maurizio realizam a façanha de erigir um terraço inabalável no meio do mar, não obstante as eventuais procelas — e, repita-se, a história da Ilha das Rosas é, além de incrível, verídica. Quanto à narrativa em si, o timing entre os diálogos e o que se passa na tela não é propriamente adequado, apesar da afinação do elenco. A perfeita alquimia entre Germano e De Angelis não permite que o interesse pelo filme se esgote, mesmo que o romance dos dois só volte a engrenar na proximidade do desfecho, momento em que se sabe que se casaram e foram felizes para sempre. A Ilha das Rosas não teve o mesmo fim e teve seu território invadido pela República da Itália, a única intervenção do país sobre um território estrangeiro desde sua unificação, em 17 de março de 1861.

Com “A Incrível História da Ilha das Rosas”, Sydney Sibilia lembra ao espectador que sonhar não custa nada, como diz a velha canção, se podendo até ir um pouco além das tolas fabulações humanas. Ainda que a utopia feneça pela mão racional e castradora de quem não entende algo tão elementar, no sonhador fica sempre um alento pela coragem de ter tentado vencer a dureza da vida como nos dizem que ela é.


Filme: A Incrível História da Ilha das Rosas
Direção: Sydney Sibilia
Ano: 2020
Gênero: Romance/Drama/Biografia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.