Eletrizante e alucinante, filme de ação da Netflix é um dos mais vistos da história do cinema Divulgação / Netflix

Eletrizante e alucinante, filme de ação da Netflix é um dos mais vistos da história do cinema

“Resgate” parece saído do mesmo molde que as melhores histórias de super-heróis: personagens com papéis muito bem definidos na narrativa pegam-se cercados por um conflito quase insolúvel, em que o protagonista, dotado de qualidades para muito além das aptidões de um homem comum, conta com poderes para dirimir todo impasse. Entretanto, pouco há de glória para o personagem central do filme de Sam Hargrave, com um Chris Hemsworth estropiado, tentando já não responder à investida de seus obstinados agressores, mas só se manter vivo. A jornada de Tyler Rake ia se encaminhando de forma até bastante razoável ao longo de quase duas horas de projeção, mas alguma coisa desanda. O que poderia ter sido?

O roteiro adaptado de Joe Russo, codiretor com o irmão, Anthony, de “Vingadores: Ultimato” (2019), parece ter a intenção de repensar a função dos candidatos a salvador do mundo nas tramas desfiadas pelo cinema. A aura de benfeitor atribuída a Rake pelos Russo incomoda, uma vez que o antimocinho de Hemsworth, mundialmente famoso na pele de Thor, o deus dos trovões na mitologia nórdica, e tão convincente que arrebatou uma franquia para chamar de sua, não é nada além de um mercenário, muito bem treinado para agir em situações de alto risco, imune a qualquer possível interferência externa — o que significa que tem demônios interiores capazes de consumi-lo de um só golpe —, dotado de raro senso de oportunidade e com problemas severos quanto a administrar seu apurado gosto por drogas, legais e ilegais. As carnificinas de maior ou menor repercussão midiática em que acostumou-se a tomar parte ao redor do globo, uma das implicações permanentes de seu ofício, nunca lhe pesaram. Com aquele jeito diabolicamente angelical, Hemsworth passa por cima das possíveis crises de consciência de seu anti-herói esmerando-se por quebrar o maior número de cabeças que conseguir, largar um rastro de ossos em migalhas e desviar da rajada de balas que se encarniça de tipos como ele; como grandes ganhos trazem dores ainda mais fundas, Rake vai ter de se superar se quiser botar a mão na bolada que lhe prometeram e conservar sua fama de mau e seu cabelo de astro do rock.

A operação para a qual está sendo requisitado é o salvamento de Ovi Mahajan Jr., o filho adolescente de um gângster de Mumbai vivido por Rudhraksh Jaiswal. O pai do garoto, Ovi Mahajan, interpretado por Pankaj Tripathi, encontra-se preso, e por isso tão vulnerável quanto o filho, sequestrado por Amir, de Priyanshu Painyuli, seu inimigo figadal. Não obstante ser dono de uma fortuna, Mahajan, chefão de um dos cartéis de drogas da Ásia, Mahajan não pode pagar o resgate porque seu dinheiro está apreendido. Mesmo assim, o submundo, sempre demonstrando uma fraternidade incomum entre cidadãos de bem, se junta e paga pelos serviços de Rake, contratado por Nik Khan, a gerente geral dos negócios do gângster, papel de Golshifteh Farahani. Sempre encalacrado, cheio das dívidas que seu estilo desregrado o leva a contrair — grande parte delas relacionadas ao ramo do novo patrão —, o guerrilheiro de aluguel sabe que essa missão tem todos os elementos para ser um fracasso, mas vai para o tudo ou nada mesmo assim.

Lançando mão de flashbacks dispersos, exibidos no transcurso da primeira metade do filme, Hargrave faz de seu protagonista uma figura instável, meio duvidosa, indigna de confiança, e a falta de clareza que paira sobre ele é o que o faz um pouco menos distante e previsível do tipo algo truculento e sempre imbatível de quase todas as produções congêneres. Rake também se sobrepõe aos demais mocinhos vilanescos da história do cinema por seu instinto paternal mal disfarçado, que espera para vir à tona com a devida força no momento em que o salvamento de Ovi Jr. começa a dar sinais de que não sairá exatamente como o planejado. Em sendo assim, ele se desobriga de cumprir os protocolos tão específicos de seu posto e socorre-se de estratégias alternativas a fim de levar a missão a cabo, recorrentemente devastado pela ideia de que sua escolha para a tarefa de reaver o menino pode apenas se tratar de um plano para acabar com seu negócio e sua vida. É duro ser um justiceiro independente.

Russo dá vazão a um roteiro desenvolto, embora o excesso de personagens reste um desafio cuja resolução degringole em saídas um tanto fáceis e pouco lógicas, enquanto todos esses arcos permanecem abertos. Talvez a imagem que melhor traduza esse atabalhoamento crescente do filme seja a aparição de Gaspar. O personagem de David Harbour, companheiro de Rake na empreitada para libertar o personagem de Rudhraksh Jaiswal, deixa escapar a dada altura da história que o protagonista de Hemsworth lhe salvara a vida, e, por evidente, ele lhe é muito grato. Mesmo assim, martela no espectador o desconforto de jamais se vislumbrar em que circunstâncias isso se dera, ao passo que a trama caminha para múltiplas abordagens em torno de ações que se fecham em si mesmas, asfixiando o clímax, que se estende um pouco além da conta. E apesar do bom humor involuntário e algo rabugento de Rake, “Resgate” não dispõe de nenhum outro respiro, sequer fortuito (e ansiados) joguinhos de sedução entre ele e Khan.

O sangue jorra ininterruptamente, uma característica do cinema macho raiz que nunca sai de moda e valoriza o trabalho de Hargrove e Russo, bem como a afinidade entre Jaiswal e Hemsworth, que ameniza possíveis elucubrações sobre um suposto discurso racista do filme, conduzido por um homem branco que, apesar de seus muitos defeitos, é o líder da missão benfazeja que livra um menino não-branco de criminosos mestiços. Para quem ignora ou finge ignorar essas entrelinhas, a carne em “Resgate” é servida ao ponto.


Filme: Resgate
Direção: Sam Hargrove
Ano: 2020
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10