Entra ano, sai ano e a cerimônia de premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, encerra na mesma proporção controvérsia, dor de cotovelo, charme e glória. Capturando as atenções do mundo desde 16 de maio de 1929 e dando início às transformações sociais que definem a própria natureza humana — quase todas graduais, lentas, todavia pouco metódicas, como se restasse uma margem bastante limitada para mudanças estruturais na quadra do tempo que nos compreende —, o Oscar continua a ser um termômetro do que anseiam povos do mundo todo quanto à inclusão das mulheres; às necessidades das gentes da periferia do globo; à preservação da natureza e das culturas regionais; à preservação da paz e à luta por igualdade; à urgência do sonho, puramente, vívido em manifestações artísticas como o cinema, a própria encarnação do melhor que o homem pode ser.
A cerimônia mais querida, mais odiada, mais falada e mais preterida do cinema mundial experimenta idas e vindas e é desses altos e baixos — mais precisamente nos baixos — que o Oscar tira a força para resistir por mais um ano. Esta foi uma safra feliz para a apreciação dos velhinhos rabugentos que compõem o corpo de jurados das centenas de produções avaliadas pela Academia a cada edição do Oscar, um espetáculo grandiloquente, milionário, ainda hoje apreciado por telespectadores de mais de duzentos países, sem contar quem acompanha a celebração pelas redes sociais e por plataformas como YouTube e Twitch. Escusado dizer que, a despeito de suas muitas más fases, o Oscar nunca deixou de movimentar bilhões de dólares em transações que superam em muito direitos de imagem e o traslado de repórteres de todo o planeta para as imediações do Teatro Dolby, o Kodak de antanho, que pela primeira vez abdicou do vermelho-sangue e deixou-se forrar de uma cor adamascada — sinal dos tempos, mas quem se importa? São vestidos, extravagantes a ponto de restringir o campo de visão do coitado que não consegue um bom lugar, flashes indiscretos que servem de inconfidentes de namoros até então secretos, comentários generosos de diretores veteranos para colegas ainda com muito chão de salas de montagem a percorrer, e tudo isso vira capital, entenda-se lucro.
O ano de 2023 foi doce para essa entidade angelina a um passo do centenário. Sem ter de fazer concessões visivelmente artificiosas — o que sói acontecer e há de seguir acontecendo pelos séculos dos séculos —, este Oscar teve o condão de agradar a grande parcela de quem dedicou tempo, dinheiro e, por natural, paixão para acompanhar as estreias, se não de todas, de muitas das produções que ganharam a praça nos últimos doze meses, exortando também a essência destacadamente artística dos filmes em escrutínio. Aqui na Bula, falamos em reiteradas ocasiões de quatro deles sob diversos pontos de vista, a começar, claro, pelo grande vencedor da noite. “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, de Daniel Kwan e Daniel Scheinert, recolocou Michelle Yeoh no radar de Hollywood. Yeoh, a primeira asiática a ganhar o prêmio de Melhor Atriz, abriu alas para que o filme dos Daniels, protagonizado por ela, levasse o Homenzinho Dourado mais cobiçado do Dolby. No papel mais complexo de sua dinâmica carreira, Yeoh encarna uma dona de casa cheia de tarefas de que nunca consegue dar cabo; uma microempresária a um passo da bancarrota; uma mãe severa e desprezada; uma filha exemplar que não sabe o que fazer para agradar o pai; uma esposa que experimenta o desprezo de seu marido e se envenena com o próprio amargor; a descendente de imigrantes que não encontra seu lugar no país que também deveria ser seu; a guerreira da batalha perdida contra si mesma. E tantas outras.
Além de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, temos a versão do merecidamente incensado Guillermo del Toro para “Pinóquio”, a fábula do jornalista e escritor italiano Carlo Collodi (1826-1890), assinada com Mark Gustafson, ganhadora do Oscar de Melhor Animação; a releitura do alemão Edward Berger para o livro de Erich Maria Remarque (1898-1970), compatriota do diretor, sobre as agruras de um regimento de garotos assustadiços, que só queriam sobreviver ao horror da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Melhor Filme Internacional; e o xodó deste seu criado, “Como Cuidar de um Bebê Elefante”, da indiana Kartiki Gonsalves. Ninguém apostou nada na vitória de um documentário hindu — e de curta-metragem —, gênero duplamente maldito em meio a todo glamour tão natural do Oscar (na verdade, o filme foi mesmo solenemente ignorado). Vi-lhe desde o nosso primeiro contato, em 25 de janeiro, méritos na forma, coroada pela fotografia da equipe liderada por Karan Thapliyal, que só tornam ainda mais vigorosa a história, sobre dois cuidadores de elefantes de uma reserva ecológica no sul da Índia. Que sorte a minha! Que sorte a nossa!
Os filmes, por evidente, são todos de 2022, estão elencados seguindo a ordem da importância das láureas com que foram agraciados, e encontram-se no catálogo da Netflix, a exceção de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, a disposição do assinante do Amazon Prime Video. Esse acabou, mas no ano que vem tem mais, e entre um e outro, nós seguimos juntos, ranqueando e tecendo comentários sobre o sem-fim de histórias que, decerto, hão de roubar nossos corações. Viva o Oscar! Viva o cinema!

A protagonista de “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” parece ter chegado cedo demais àquela fase em que boa parte do que sonhamos revela-se apenas sob essa forma, um sonho (distante), ao passo que a realidade já se tratou de se mostrar em toda a sua crueza, deixando muito claro que ou nos conformamos com nossas imperfeições ou o sofrimento é inevitável. No papel mais complexo de sua dinâmica carreira, Yeoh encarna uma dona de casa cheia de tarefas de que nunca consegue dar cabo; uma microempresária a um passo da bancarrota; uma mãe severa e desprezada; uma filha exemplar que não sabe o que fazer para agradar o pai; uma esposa que experimenta o desprezo de seu marido e se envenena com o próprio amargor; a descendente de imigrantes que não encontra seu lugar no país que também deveria ser seu; a guerreira da batalha perdida contra si mesma. E tantas outras.

Filmes sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não são exatamente raros. O palpite, errôneo, deve-se ao fato de muitas dessas produções remontarem a tempos quase esquecidos, dados por mortos, mas que, em razão do comportamento errático e insensato do gênero humano, voltam à baila de quando em quando, trazendo consigo a necessidade de se refletir sobre os rumos a serem tomados pelas nações neste alucinado e alucinante século 21, estigmatizado já na primeira hora como uma era de extremos, violência e medo. “Nada de Novo no Front” (2022) não é, com a licença do trocadilho, novidade alguma. Mais recente adaptação do romance homônimo do alemão Erich Maria Remarque (1898-1970), o filme de Edward Berger, compatriota do escritor, reconstitui os passos de uma longa marcha, iniciada em janeiro de 1929 e protagonizada por um garoto assustadiço, levado a amadurecer na marra em meio à barbárie tão característica de uma guerra.

Guillermo del Toro é um mestre em chacoalhar as certezas de quem prestigia seu trabalho. Em quase quarenta anos de carreira, o mexicano escalou o olimpo dos grandes diretores do cinema contemporâneo com garbo, sem menosprezar a concorrência, mas muito seguro de seu talento e do que queria representar. Hoje, quando se fala em Del Toro, pensa-se incontinente naquelas histórias plenas de uma maravilhosa hediondez, que tratam logo de reduzir a pó a hipocrisia e a burrice de quem alardeia aos quatro ventos sua justiça, suas boas intenções, seu bom-mocismo, todas essas meras camadas de um verniz xexelento, que mal esconde a perversão das emoções calculadas. Com sua versão para “As Aventuras de Pinóquio”, romance do jornalista e escritor florentino Carlo Collodi (1826-1890) escrito em 1881 e publicado dois anos depois, o diretor confirma seu intento de continuar subvertendo as ilusões de seu vastíssimo público, proporcionando novas dúvidas em vez das fáceis respostas pelas quais muitos anseiam.

Mesmo num trabalho de magros (mas acachapantes) quarenta minutos, Kartiki Gonsalves prima pela serenidade, pela delicadeza e pela doçura em “Como Cuidar de um Bebê Elefante”, registro afetivo da vocação de gente como Bomman e Bellie, nativos da etnia Kattunayakan, desde sempre habituada ao trato com os elefantes. Muito mais que um ofício, cuidar dos animais é para os Kattunayakan uma sina e, em dadas circunstâncias, uma bênção. A vida de privações e de incertezas, cercada pelo gigantismo tirânico dos Nilguiris, só cede em sua austeridade quando, de tempos em tempos, Ganesha resolve abençoar os Kattunayakan e coloca em seu caminho criaturas como Raghu, o elefante asiático a que se refere o título do filme. Ao longo de 140 anos de história, poucos tiveram a chance de poder dedicar-se à criação de um bebê que encarna o próprio deus hinduísta da abundância e do intelecto. Bomman e Bellie conseguiram.