Suspense erótico da Netflix, apesar de carregado de clichês, é melhor do que você imagina Divulgação / Netflix

Suspense erótico da Netflix, apesar de carregado de clichês, é melhor do que você imagina

No transcurso da vida, repetem-se as situações em o sentimento amoroso nos aprisiona, nos domina, nos oprime — o que não vem a ser um incômodo ou uma nódoa moral. Uma vez que se tem claro que decidir viver com outra pessoa implica prazeres, os do corpo e os melhores, mas também muitas, muitas dificuldades, algumas intransponíveis a depender da forma como os amantes manejem seus desamores. Lutamos para nos preservar sãos, a uma razoável distância do caos e da desdita, numa peleja que o outro pode ajudar-nos a vencer, mas que é só nossa. “Por Trás da Inocência” é um filme corajoso. É preciso estar muito certo do que se quer comunicar por meio de uns tantos lugares-comuns acerca do clichê dos clichês, sobretudo num tempo de constrangedora autoexposição nas ditas redes sociais que muito mais isolam que congregam, lançando mão de um assunto que nunca deixa de pular das cabeças para as bocas, a despeito de credo, etnia, sangue, fortuna, levando a termo as modalidades mais contraditórias de amor e os elementos que o rodeiam.

Por quase duas horas Anna Elizabeth James fala das fantasias pueris sobre amor eterno e tórridos folguedos de alcova para além da idade conveniente, acrescendo a esse caldo ralo suas deambulações sobre um martírio a que poucos atormenta. A breguice previsível do roteiro de James é suavizada — e até ganha sentido — na medida em que se conhece a rotina enfarosa de Mary Morrison, a personagem central, vivida por Kristin Davis. A escritora de sucesso que, no auge da carreira, decide retirar-se, definitivamente, para uma mansão de janelões panorâmicos e quintais a perder de vista no subúrbio a fim de criar os gêmeos Alex e Sam, de Marie Wagenman e Shylo Molina, tenta se convencer de que tomou a decisão certa, mas frequentemente se pega contemplando a brancura artificiosa daquelas paredes imaculadas, na letargia mortal que apenas revela como está por dentro. A saída para tentar não ser massacrada pelas próprias escolhas é rever os planos e começar outra vez a escrever, motivada também por alguns eventos paralelos.

A diretora-roteirista insinua a desarmonia do casamento de Mary chamando à cena Tom, o marido. Não propriamente desmazelado com a relação, mas decerto importando-se cada vez menos com a mulher, o personagem de Dermot Mulroney dá um pouco mais de profundidade e mesmo de ritmo à narrativa no exato momento em que o enredo começa a demonstrar sinais de fadiga — ainda no primeiro ato —, quando se espera por algum sobressalto que faça justiça ao prometido suspense. Para dedicar-se sem muito prováveis contratempos domésticos a mais uma edição dos best-sellers de amores fracassados, traição e morte que a fizeram milionária e famosa (mas sempre cheia de embates íntimos quanto à relevância e valor artístico dessas histórias), Mary passa a entrevistar algumas moças que se oferecem para o emprego de babá. Num fim de tarde, já meio desapontada com as candidatas, aparece Grace, a sílfide loira de Greer Grammer. Nem convém perguntar por quem Mary se decide.

Do segundo para o terceiro ato, James elabora as subtramas que levam “Por Trás da Inocência” aos caminhos mais ou menos esperados, com Grace se prestando a um revival da vilãzinha de Ludivine Sagnier em “Swimming Pool — À Beira da Piscina” (2004), de François Ozon, sem boa parte do glacê retórico — e do charme de Sagnier. Sucedem lances perturbadores nas sequências em que a diretora explora melhor o alterado fluxo de consciência de sua protagonista, sempre fomentando no público a dúvida quanto a algumas circunstâncias pertencerem ou não ao plano da realidade. O mérito de um filme pequeno.


Filme: Por Trás da Inocência
Direção: Anna Elizabeth James
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 7/10