Novo filme da Netflix tem 100% de avaliações e vai te fazer acreditar em luz no fim do túnel Divulgação / Netflix

Novo filme da Netflix tem 100% de avaliações e vai te fazer acreditar em luz no fim do túnel

Sempre em busca do alívio mais imediato para os males que se arrastam ao longo de uma vida de desencontros, o homem perde-se em suas ilusões de perfeição, intimamente ligadas aos tantos frágeis padrões que vão orientando sua vida na direção do engano e da perdição. Ainda um dos mais indevassáveis enigmas, para a literatura médica e para o próprio homem, o cérebro e suas doenças impactam corpo e alma em medida equivalente, despertam a curiosidade de todos e fomentam soluções de que não raro resultam problemas, principiando um ciclo infesto, que acaba por degringolar em estragos cuja gravidade não se tinha muito clara. As psicopatias, os males da alma, se impõem sobre a vida de uma pessoa, variando de intensidade conforme o modo como o paciente porta-se no mundo, e tornam-se cada vez mais frequentes à medida que as drogas usadas em seu combate, legais ou não, igualmente ganham o destaque que só mesmo o homem pós-moderno é capaz de lhe conferir, indo de encontro à muralha de novos obstáculos que fazem de sua jornada uma aventura ainda mais tormentosa.

Passamos a vida tentando não melindrar suscetibilidades quanto ao modo como reagimos às dificuldades que atravancam-nos o prosaico cotidiano, pensando e repensando nossas atitudes, receando que a fatura chegue e não estejamos preparados. Eternamente acossado por suas escolhas, o gênero humano avança no tempo desafiado pelo medo do futuro que não raro degenera na paranoia fundada numa luta insana entre o bem e o mal, cenário que o existir lhe apresenta sob a forma de um interminável ir e vir de sensações que beiram o absurdo. Para aliviar esse incômodo, o homem sai à cata de alento do jeito mais execrável, condenando não só a si, como quem passava ao largo de todo esse desarranjo até então. O homem e sua vontade de conquistar o mundo esbarram no livre-arbítrio de muita gente, inclusive — ou principalmente — no daqueles que esforçam-se por se manter a salvo das armadilhas que dispõem-lhes ao longo do caminho. Drogas são uma escolha individual, mas que, dada a vastidão de seu alcance, interferem no dia a dia de quem não as usa.

Em seu terceiro longa-metragem, Natalia Beristain continua a tratar de muitos dos obstáculos que interditam-nos a felicidade, mas dessa vez resolve ir um pouco mais fundo na análise psicossocial do objeto que se propõe dissecar. À diferença de “No Quiero Dormir Sola” (2012) e “O Eterno Feminino” (2017), “Ruído” remexe os arquivos mortos de um México incapaz de virar a página dos desaparecimentos em plena democracia, a maior parte em alguma medida vinculados ao império dos narcocartéis. Beristain conseguiu que trabalho fosse acolhido pelo Festival de San Sebastian, onde logo passou a ser encarado como o grito de socorro da população mexicana do século 21, quase inerte depois dos sucessivos golpes do poder paralelo, mas ainda pulsando.

O alarido da introdução, com Julia, a protagonista vivida por Julieta Egurrola como que perdida em si, dá uma boa ideia do que vai se passar ao longo de 105 minutos de sequências ora mais cadenciadas, ora frenéticas em que a diretora acompanha a agonia de uma mulher incansável em sua busca por justiça. Egurrola, mãe de Beristain, confere essa tensão de que a personagem carece para que a história se mantenha quente até o fim. Esse envolvimento literalmente visceral talvez seja a quintessência num filme que parece mesmo um projeto de família — Arturo Beristain, pai de Natalia, também desempenha um papel, secundário, mas relevante, na trama.

O envolvimento de Julia com o movimento de mães de desaparecidos — é impossível não recordar as argentinas Mães da Praça de Maio — em busca de Gertrudis, a filha que permanece sumida ao longo de todo o enredo, dá uma ínfima mostra da agonia daquelas mulheres, algumas figurantes reais, mães reais em busca de filhos cujo destino não se sabe. Dados oficiais apontam para mais de 90 mil desaparecidos desde o início da chamada guerra das autoridades mexicanas contra o narcotráfico, deflagrada em 2006. O desfecho de “Ruído” prova que a luta inglória das desditosas mães do México ainda vai longe.


Filme: Ruído
Direção: Natalia Beristain
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10