Perturbador, filme com Emily Blunt, na Netflix, prende o espectador do início ao fim Divulgação / Constantin Film

Perturbador, filme com Emily Blunt, na Netflix, prende o espectador do início ao fim

Casamentos podem ser a oportunidade ideal para que se unam não duas pessoas que trocam juras de amor eterno que não resistem à pálida luz da alvorada, mas paranoias de vidas fraturadas em alguma curva imprecisa do caminho, e, por uma razão compartilhada só pelos dois, são justamente essas suas debilidades que fazem com que o erro imperdoável da união transforme-se num vínculo que dura indefinidamente, quiçá para além da vida, e que desconcerta pela lealdade com que os cônjuges enxergam-se um ao outro. Quando compreendem, não raro à custa de muitas batalhas contra a intransigência dos titânicos moinhos de vento a rondar sua vida em comum, que estão juntos para descobrir o que, afinal, os impele a seguir tentando manter sua história, sufocando fantasias pueris sobre amor eterno e tórridos folguedos de alcova para além da idade conveniente, amantes — ou esses dois elementos que, queiram ou não, viram um único ente às vistas da sociedade — têm uma possibilidade exponencialmente maior de serem felizes, ainda que essa bonança nunca se vá completar e pareça sempre necessitada de um reforço. Até que a fonte seca de vez.

O casamento é a instituição falida mais invejada da história da humanidade. Dois indivíduos completamente diversos um do outro, dois rios paralelos que em algum momento se cruzam e, se tudo correr bem, vão desaguar no oceano plácido da Eternidade. Mas e se as coisas não forem exatamente assim (e quase nunca o são)? É justo essa a magia do amor. Vinicius de Moraes (1913-1980), gênio e um especialista no assunto, disse muito bem em seu “Soneto de Fidelidade” (1946) que o amor, em sendo chama, não pode ser imortal, mas pode ser infinito enquanto os amantes se amarem. Pode ser redundante, óbvio até, mas o amor é mesmo ridículo, como alega o poeta lusitano Fernando Pessoa (1888-1935), outra sumidade no assunto. A picardia cínica de Machado de Assis (1839-1908), contudo, é que parece definir não o amor, mas sua prova factual mais evidente — ao menos do ponto de vista sociojurídico —, ao dizer que o amor foi feito por Deus, mas o casamento é uma invenção do diabo, que tomou a cabeça do homem e o fez confundir este com o primeiro.

Pelo que apresenta em “A Garota no Trem”, Tate Taylor concorda plenamente com o Bruxo do Cosme Velho. Dando todo o espaço às neuroses de uma mulher abandonada, o diretor fala desses relacionamentos que não resistem à batalha de egos, ao descompasso das vontades, à incomplacência de ambas as partes no trato um com o outro e com o compromisso que um dia assumiram tão convictamente. Adaptado do romance de Paula Hawkins, publicado em 2015, o roteiro de Erin Cressida Wilson fascina justamente ao fundir com precisão o inesperado de sequências que adquirem carga dramática cada vez maior à imersão no universo psicológico das três mulheres cujo verniz de aparente (e enganosa) normalidade Hawkins desbasta até o osso, a começar, claro, pela que dá nome ao filme.

Decerto “A Garota no Trem” seria apenas mais uma história de amores fracassados e, por evidente, as doenças do corpo e da alma — em especial as da alma — que deles eclodem aos borbotões, feito vermes quando se levanta a pedra que os abrigava — se não fosse a versatilidade de Emily Blunt. Às primeiras cenas, se nota que Rachel é uma mulher não propriamente desequilibrada (ainda), mas em sérios apuros quanto a compreender seu lugar no mundo depois de uma desilusão amorosa que Taylor elabora com cautela demasiado excessiva, a ponto de se levar uma boa metade dos 112 minutos de projeção até que se tenha por definido qual o seu papel na trama. O trem é essa metáfora um tanto elementar, mas imbatível, de alguém que se desloca de um lugar para outro num ritmo muito específico, nem tão lentamente que deseje ir andando, nem tão depressa que exija a compra de um bilhete de avião, no caso dos enredos modernos e contemporâneos, naturalmente — eu ainda hei de escrever uma tese sobre a importância da malha ferroviária para a indústria cinematográfica. A inadequação social de Rachel torna-se ainda mais inescapável quando a detetive Riley, de Allison Janney, toma um susto ao saber que a moça, sem colocação profissional, gasta o dinheiro do seguro-desemprego abalando-se de Westchester, no subúrbio de Nova York, até Manhattan para passar o tempo. Com o humor que lhe é peculiar, Janney dota Riley da perspicácia de que alguém em sua posição carece para chegar ao fulcro do conflito que sustenta o longa, o pretenso crime que Rachel diz ter presenciado de dentro do vagão, e que o diretor, inteligentemente, mantém em suspenso até o fim valendo-se dos expedientes mais ardilosos.

Um deles e colocar tantas mulheres perturbadoramente bonitas na mesma narrativa. Apesar de dirigido por um homem, “A Garota no Trem” é um filme de mulheres e, ouso dizer, para mulheres. Além de voltar ao inesgotável e invencível tédio da classe média, explorado de modo definitivo por Sam Mendes em “Beleza Americana” (1999), Taylor se atreve a apontar o óbvio perigo do álcool, como fez Edgar Allan Poe (1809-1849) com “O Barril de Amontillado” em 1846 (!), principalmente para o belo sexo. E sem o menor vestígio de um discurso moralista, que como sabemos, não ensina e ainda aborrece.


Filme: A Garota no Trem
Direção: Tate Taylor
Ano: 2016
Gênero: Thriller
Nota: 8/10