Baseado no teatro do absurdo de Beckett, filme da Netflix não te deixará piscar por 108 minutos Divulgação / Yannis Drakoulidis

Baseado no teatro do absurdo de Beckett, filme da Netflix não te deixará piscar por 108 minutos

A inadequação para com o mundo serve ao homem como um sinal de que é-lhe necessário buscar o entendimento — primeiro sobre sua própria natureza, seus receios, carências e misérias — que o permita alcançar a sabedoria instintiva que, por seu turno, há de prestar-se-lhe como amparo quanto a obter de si mesmo, tirando do mais fundo e bárbaro de seu espírito, algum indício de que não é nenhuma rematada extravagância supor que se tenha a chance, por mínima que seja, de penetrar o reino vasto (e muitas vezes perigoso) do autoconhecimento, porém somente ao cabo de uma romaria extenuante e infrutífero por um mundo vasto demais, injusto demais, que lhe vai mostrando com toda ferina serenidade que, por mais que tente, de quase todo o solo onde coloca os pés, nasce apenas uma erva amarga, que não o alimenta e tampouco o diverte. O homem passa a vida temendo a postura que assume diante de dificuldades que lhe atravancam o prosaico dia a dia, por mais que pense e repense suas atitudes, justamente porque sabe que cedo ou tarde (e quase sempre é bem cedo, muito antes do que se gostaria) o destino há de lhe mandar a conta e ele há de ser obrigado a se explicar sobre tudo quanto fez — e tanto mais sobre o que deixou de fazer. Acossado por suas escolhas, o gênero humano avança no tempo confrontado com um medo do futuro que não raro degenera na paranoia fundada numa insana disputa entre o bem e o mal, conjuntura que o existir lhe apresenta sob a forma de um interminável ir e vir de sensações que beiram o absurdo.

Enredos em que o cidadão comum parece completamente deslocado, alijado de qualquer poder de decisão, obrigado a exilar-se num mundo paralelo, uma vez que o palco da realidade é tomado por forças sobre as quais não tem nenhum controle, inquietam o espírito do homem sem qualidades e excitam o gênio daquele que tem o maravilhoso condão de interpretar a aura de obscurantismo e degenerescência intelectual da era em que vive e catalisar o fenômeno de modo a promover as mudanças que julga necessárias, do jeito que sabe, sem se impacientar por resultados e até revestir de um muito apropriado cinismo e somente locupletar-se com os louros de suas reflexões, no fundo descrente de que alguma transformação genuinamente poderosa tome curso.

Como o título mesmo se encarrega de insinuar, é impossível se tecer o mais irrelevante comentário a respeito de “Beckett” sem se analisar, ainda que a voo de pássaro, a obra do dramaturgo que empresta seu sobrenome ao filme e ao personagem central. O irlandês Samuel Beckett (1906-1989) tinha uma aptidão sobre-humana para extrair da miserável alma o que tivesse de ainda mais digno de asco e de pena: sua pequenez, invencível, visceral, metafísica, diante do mundo, imenso, inclemente e muito, muito perverso, que o rodeia — e não é mister pendurar um diploma de Harvard ou da Sorbonne para se fazer a ilação, essa, sim, muito lógica, de que esse mundo é, na esmagadora maioria das circunstâncias, o Estado, onipresente, inchado, mastodôntico, sequioso por resultados, seja lá o que isso queira dizer. Mais o homem sonha com a liberdade possível, mais o dito sistema lhe mostra que nem isso lhe cabe, que seu papel é sublimar as dores de sua débil humanidade e alimentar a máquina sem protestos, até que a morte lhe venha em socorro.

O roteiro, do diretor Ferdinando Cito Filomarino e Kevin A. Rice, presta uma (singela) homenagem ao Beckett de “Esperando Godot”, de 1952. Filomarino e Rice decerto sabem que esse texto veio à luz em francês, estreou no Théâtre Babylone, uma poeira údi-grúdi de uma Paris sempre em festa, mas ainda machucada por seis anos de uma guerra selvagem, dirigido por Roger Blin (1907-1984). E todos sabem que dizer o nome da mais bela flor da Irlanda é aludir de imediato ao teatro do absurdo, a maneira encontrada por Beckett para vencer a loucura da vida. É precisamente este o gancho em que o diretor-roteirista e seu colaborador agarram-se ao contar a história de Beckett, o americano tranquilo vivido por John David Washington devidamente aparvalhado, em férias num paraíso nas entranhas da Grécia. Filomarino e Rice mudam Vladimir e Estragon em Beckett e sua namorada, April, de uma Alicia Vikander generosa, estrela de cinco pontas que sabe a hora de brilhar e de deixar que sei companheiro brilhe. Naturalmente, os dois fogem de algum perigo, real ou fantasioso, futuro ou iminente, e quando de um evento em que são colhidos por uma desdita, se dá início à caçada que segue até o encerramento, cujo alvo de gregos malvados é o negro Beckett.

Esse detalhe do argumento de “Beckett” me causou pensamentos que continuam-me à roda. Custo a acreditar que um povo ordeiro como o helênico produza indivíduos que se encarniçam de um forasteiro, e de pele escura — logo eles, subjugados com violência bestial pela Turquia até ontem. Prefiro supor que tudo se trata mesmo de puro Beckett, o irlandês, e seu teatro delirante, transposto para a tela por um diretor e seu parceiro muito mais atrevidos do que o cinema tem podido engolir de algum tempo para cá.


Filme: Beckett
Direção: Ferdinando Cito Filomarino
Ano: 2021
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 9/10