O filme alucinante que tem 100% de avaliações positivas, mas você não assistiu Divulgação / Everymedia

O filme alucinante que tem 100% de avaliações positivas, mas você não assistiu

A Índia sempre foi vítima de uma abordagem delirantemente equivocada, sob a qual retratam-na como um lugar exótico em que eventos impensáveis acontecem de hora em hora — e ninguém sequer toma conhecimento, dada a população de quase 1,4 bilhão de habitantes. Diretores estrangeiros têm se esmerado a fim de conferir ao subcontinente o caráter de pluralidade que constitui sua cultura milenar, como o francês Louis Malle (1932-1995) em “Índia Fantasma” (1969), ou o inglês John Madden, de “O Exótico Hotel Marigold” (2011). Mas a Índia é perfeitamente capaz de falar por si.

Em “Kahaani” (2012), Sujoy Ghosh mistura com arrojo competente thriller, romance, drama e crítica social como só alguém tão fortemente marcado por sua própria terra consegue. Aludindo aos belos rituais religiosos do país — com as tantas cores berrantes, as luzes vívidas, os fumos estupefacientes da Durga Puja, festa em honra da deusa da Criação hindu —, bem como levando à tela a babel de uma Calcutá que parece congelada num passado de pobreza, atraso tecnológico e vida em tudo precária, Ghosh oferece ao espectador um panorama bastante autêntico do que é ser uma pessoa comum na Índia dos nossos dias.

O argumento de que o diretor lança mão pode soar repetitivo, mas vai se revelando surpreendentemente original com o avançar da trama. O desaparecimento de Arnab Bagchi, de Indraneil Sengupta, desencadeia em Vidya, grávida, um fluxo de pensamentos paranoicos que passam a reger sua vida. A protagonista, encarnada com total entrega por Vidya Balan, se determina a não descansar enquanto não souber o que de fato pode ter acontecido com Arnab, expert em tecnologia da informação, que some depois de incumbido de um projeto para uma agência secreta do governo da Índia, o National Data Centre, o Centro Nacional de Informações. Na sequência anterior, dois anos antes, um cientista realiza um experimento que desenvolve um gás mortífero que vai parar dentro de uma mamadeira, guardada numa bolsa esquecida num vagão do metrô da megalópole indiana, o que acaba ocasionando uma tragédia.

O arco de suspense em “Kahaani” começa mesmo quando Vidya nota que seu marido é um sósia de Milan Damji, também de Sengupta, ex-funcionário da NDC igualmente envolvido num episódio nebuloso. Os chefões da autarquia começam a se sentir incomodados com suas descobertas e se propõem a dar um fim à xeretagem dela. Para tanto, a agência destaca Bob, o tipo esquisito e perigoso vivido por Saswata Chatterjee, que passa a seguir seu encalço.

O roteiro obedece ao padrão de Bollywood, leia-se, uma história de crimes nada sutil — até aí em tudo parecido com a homóloga indústria americana —, sem no entanto descuidar dos elementos melodramáticos (a mocinha que está sempre levando uma traulitada de todo mundo, o herói improvável que passa a ajudá-la, o cenário de pobreza severa a circundar os dois, um trunfo no trabalho de Ghosh), nesse particular muito distinta de Hollywood. O desempenho invulgar de Balan, uma das melhores atrizes indianas do cinema contemporâneo, é indispensável quanto a segurar um enredo que vai se bifurcando mais e mais ao denunciar a burocracia invencível e inócua, personificada em Khan, personagem de Nawazuddin Siddiqui, e Chatterjee se revela um antagonista à altura do talento da intérprete de Vidya, muito convincente no papel de um psicopata disposto a tudo.

O ritmo do filme oscila entre o arrastado e o frenético, um sempre se prestando a compensar o outro, o que resulta numa narrativa ágil, mas nada hermética, em que Sujoy Ghosh sempre dá um jeito de destampar aquele caldeirão fervilhante e proporcionar à audiência o respiro necessário, ajudado pela trilha bem sacada de Clinton Cerejo. A Índia pode ser confusa, como o desfecho de “Kahaani” deixa claro, mas é um lugar sempre por se descobrir. Bem como seu cinema, cada vez mais renovado.


Filme: Kahaani
Direção: Sujoy Ghosh
Ano: 2012
Gêneros: Suspense/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.