Todas as histórias de amor trazem em seu bojo o signo da tragédia e se conseguem transferir sua carga de malignidade para outro cenário, em que não passe de mero coadjuvante, resta mais que comprovada a natureza sombria do amor, que se transmuta inclusive para o ambiente corporativo. Quando isso acontece, ninguém mais ousa defender algum resquício de nobreza no mais humano dos sentimentos. No entanto, como o amor é a porta da filosofia, que por sua vez, está em tudo — bem como o próprio Deus, de onde emana todo o amor e toda a sabedoria, isto é, a filosofia ela mesma —, nada acontece sem que haja um propósito muito bem definido por trás. A maneira como certos indivíduos fogem de uma explicação racional para suas hecatombes pessoais nos remete ao filósofo Baruch de Spinoza (1632-1977). O holandês defendia que a aura de divindade de um ente capaz de reger todos os outros residia exatamente no seu caráter de poder se imiscuir a tudo, afinal todos os seres e mesmo todas as coisas têm seu lado luminoso, que os aproxima do céu e do Altíssimo.
Tudo quanto envolve aviões e disputas por popularidade — sobretudo no cinema e sobretudo entre homens — tem muita chance de se tornar um sucesso instantâneo, e para além de um momento breve. Depois de certa idade, meninos escolhem brinquedos um pouco menos seguros, aos quais passam a se dedicar com um amor que beira a obsessão. Esse é um dos grandes segredos que fazem “Top Gun — Ases Indomáveis” (1986), de Tony Scott, cruzar o horizonte e cravar no firmamento mais um astro, experiente e ousado desde sempre. “Top Gun” lança mão de truques simples a fim de capturar o interesse da plateia (ou das plateias), a exemplo de mostrar seu protagonista singrando um oceano de nuvens num caça da Marinha americana ao passo que tenta abater o MiG russo que invadira o espaço aéreo dos Estados Unidos. Para tanto, o piloto inverte o eixo da aeronave e voa tão perto do inimigo que pode mesmo tirar uma foto dele, o que efetivamente faz. Passadas quase quatro décadas, uma sequência tão rápida e ainda mais despretensiosa fornece uma pletora de explicações acerca do país em que o roteiro de Jack Epps Jr. e Jim Cash situa a narrativa, sem esquecer de incluir o espectador no que acontece.
Aos poucos, a grande estrela do filme de Scott desponta numa plataforma que se estende para muito além da atmosfera de heroísmo militar que circunda todo o enredo. O Maverick de Cruise é aprovado para a escola que forma pilotos de elite da Marinha, chamada pelos cadetes de Top Gun, como se lê na tela negra com que o diretor abre o longa. Maverick, codinome de Pete Mitchell, vai sendo destrinchado pelo texto de Epps Jr. e Cash, momento em que se tornam menos nebulosas algumas informações relevantes a respeito do mocinho. Aos 24 anos, Maverick sofre calado a morte da mãe e do pai, também um piloto dedicado, mas que passa à história como o soldado imprudente cuja falta de perícia levou à morte de um companheiro durante a Guerra do Vietnã (1955-1975), um dos poucos malogros inolvidáveis das tropas ianques em enfrentamentos bélicos com outros povos. Cerca de vinte anos depois, é Maverick quem responde pela mesma acusação, indiciado num processo militar que o incrimina pela morre de Goose, o parceiro de voo vivido por Anthony Edwards. Como se pode supor, Maverick é considerado inocente, e a partir de então o relacionamento entre o personagem central e Tom Kazanski, o novo colega cresce na narrativa. Kazanski, mais conhecido como Iceman, “homem de gelo”, por sua insensibilidade crônica e seu temperamento avesso a maiores interações. Val Kilmer absorve bem a essência do anti-herói, deixando claro que o rematado distanciamento de Iceman é muito mais uma estratégica de defesa, mecanismo de sobrevivência em meio a um ambiente tão hostil. Na esteira da guerra fria entre Maverick e Iceman, Scott encontra uma greta para encaixar o envolvimento amoroso do piloto com Charlotte Blackwood. Charlie, especialista em astrofísica, um desempenho luminoso de Kelly McGillis, garante a leveza de que “Top Gun” passa a se ressentir depois de quase dois terços do longa meio áridos demais, com direito a uma estimulante discussão sobre possíveis impedimentos éticos no envolvimento romântico de colegas, tanto pior nesse ofício.
Filmes como “Top Gun — Ases Indomáveis” acabam se convertendo em verdadeiras instituições, mas há que se assinalar certos deslizes, caso das cenas dos pilotos jogando vôlei de areia, completamente dispensáveis. Foi por topar bizarrices que tais que Tom Cruise virou uma das celebridades mais queridas (e bem pagas) do mundo, mesmo depois de um período de ostracismo calculado quando da onipresença da cientologia em tudo o que lhe dissesse respeito. Encampando outras pequenas e deliciosas loucuras, como abrir mão de dublês em nome da tal verossimilhança, Cruise tem permanecido no alto, com todo o mérito. Vida longa ao rei.
Filme: Top Gun — Ases Indomáveis
Direção: Tony Scott
Ano: 1986
Gêneros: Guerra/Romance/Ação
Nota: 8/10