O filme desconhecido da Netflix que vai invadir sua alma, tirar seu chão e explodir sua cabeça Divulgação / Rise Pictures

O filme desconhecido da Netflix que vai invadir sua alma, tirar seu chão e explodir sua cabeça

A dificuldade em se classificar um filme dentro de um único gênero específico não significa necessariamente que ele seja muito bom, por ser rico visualmente, dispor de uma narrativa bem desenvolvida e, de quebra, contar com direção e elenco de primeira; tampouco queira dizer que seja, ao contrário, ruim a ponto de, podendo ser enquadrado em diversas categorias, sofrer de uma esquizofrenia artística que o impede de gozar de identidade própria e ser devidamente apreciado, seja lá por que espécie de público. A despeito dessas rápidas considerações, “The Soul” é uma das mais gratas surpresas do ano até o momento.

O argumento inicial do filme do diretor taiwanês Cheng Wei-hao talvez ludibrie o espectador justamente por causa da naturalidade com que é apresentado. Sabe-se de cara que o promotor de justiça Liang Wen-chao, de um Chang Chen em seu melhor papel, e a esposa, a policial Ah-bao, vivida por Janine Chang Chun-ning, também merecendo avaliação positiva, se debruçam sobre a investigação do homicídio de um megaempresário, dono de uma corporação que controla uma cadeia de empreendimentos milionários em toda a Ásia. O enredo não se alonga muito sobre esse arco dramático num primeiro momento, mas se denota que entre os suspeitos do assassinato estão a mulher e o filho da vítima.

A atmosfera noir decerto é um dos grandes trunfos de “The Soul”, mesmo fisicamente. O emprego de cores frias, com predomínio do azul-marinho e do cinza-chumbo, realçado pelo efeito de névoa em dadas sequências, empresta ao longa a densidade cênica de que precisa, deixando cada vez mais nítida a intenção de Cheng Wei-hao quanto a confundir a audiência o quanto puder. A própria cena do crime que abre a história é emblemática do potencial de fomentar o mistério do roteiro, de fato um dos mais caudalosos da história do cinema, adaptado de “Soul Removal Skills” (“técnicas de remoção da alma”, em tradução literal), romance de ficção científica de Jiang Bo que trata da evolução de tecnologias para o melhoramento do cérebro humano em detrimento do espírito. Transcendendo o evento delituoso em si, a trama se estende sobre rituais de magia negra, possessão demoníaca, metempsicose — o transporte da alma para outro corpo —, experimentos de biotecnologia e o irrefreável progresso da engenharia genética, assuntos espinhosos suavizados pela abordagem do sentimento amoroso entre Liang Wen-chao e Ah-bao, vigoroso o bastante para ignorar o câncer metastático que devasta a saúde do personagem de Chang Chen. Todos esses motes vêm coroados por uma sucessão de reviravoltas que pululam na tela e sempre tomam o espectador de assalto.

O fato do longa se passar em 2032, um futuro muito próximo, portanto, ressalta o caráter especulativo da obra de Cheng Wei-hao, que gosta de avançar e retroceder no tempo em seus trabalhos, vide o que já fizera em “Who Killed Cock Robin” (2017). Aqui, o que se tem é a exposição de uma sociedade que não abre mão de melhorias tecnológicas, ao passo que não se dá conta do quão vai se desumanizando à medida que acata bovinamente as imposições da máquina; aludindo sem glacês retóricos à fragilidade do homem, “The Soul” tem passagens memoráveis, como as que retratam a abnegação de Liang Wen-chao em permanecer no caso do milionário assassinado, usufruindo de toda a modernidade do aparato estatal, mas ele mesmo fenecendo devido a uma doença cruel que não lhe dá trégua.

Chang Chen é, indiscutivelmente, a alma do filme. Ao topar o desafio de dar vida a um homem que morre, mas que ao mesmo tempo não se conforma em entregar os pontos assim tão fácil, Chang mostrou do que é capaz e, na sequência, já foi escalado para “Duna”, adaptação do romance de ficção científica do escritor americano Frank Herbert (1920-1986), publicado originalmente pela Chilton Books em 1965. Já registrada sob a ótica de um delirante David Lynch em 1984, agora quem dá as cartas é o franco-canadense Denis Villeneuve, um dos diretores mais sofisticados do cinema de todos os tempos. No filme de Villeneuve, o ator, mesmo num papel muito menor que o projetou em “The Soul”, mais uma vez rouba a cena.

Um dos alegados calcanhares de Aquiles de “The Soul” é sua extensão, 130 minutos, a justa medida para que se narre a história sem atropelos e sem os tantos jumpscares, que se tornaram verdadeira praga em filmes homólogos precisamente porque usados de modo pouco criterioso. Como sempre sói acontecer em casos que tais, o espectador que se deixa seduzir pela trama — o que se constitui um genuíno deleite —, vivencia instantes de refinamento intelectual, quiçá de iluminação mesmo.

Com “The Soul”, Cheng Wei-hao reafirma seu talento, auxiliado por profissionais de vulto, como Chang Chen, que proporcionam a seu trabalho a aura de obra-prima de que raras produções são dignas. Encontros como esse resultam em um filme que entranha na alma da gente.


Filme: The Soul
Direção: Cheng Wei-hao
Ano: 2021
Gênero: Ficção Científica/Mistério
Nota: 9/10