O filme angustiante e perturbador da Netflix que vai te fazer pensar, mas também te fará descer ao inferno Tina Harden / Koch Films

O filme angustiante e perturbador da Netflix que vai te fazer pensar, mas também te fará descer ao inferno

Além das dificuldades características do ofício, policiais frequentemente se veem às voltas com conflitos éticos que torturam a consciência, o que muitas vezes torna insuportável a rotina já atribulada. Padecendo de doenças do espírito típicas do trato cotidiano com gente perigosa, agentes da lei acabam enveredando por um caminho sem volta ao dar espaço a ímpetos de arbitrariedade. Abusando do clichê e do reducionismo, há pessoas boas e pessoas más, e, em sendo assim, também há policiais bons e policiais maus, e são esses últimos os que acabam ficando na memória coletiva dos povos e dos indivíduos. Episódios de abuso policial como o que redundou na morte do ex-vigilante George Floyd (1973-2020), em 25 de maio de 2020, escancararam a deficiência da polícia americana em lidar com questões que exijam um pouco mais de empatia, sensibilidade, destreza, inteligência emocional. Aos poucos, começaram a pipocar denúncias de violação de direitos humanos básicos por parte das forças de segurança de países do mundo todo, mormente naqueles em que fenômenos sociais complexos como a imigração tomou a pauta. Não parece razoável banir esses cidadãos da vida nacional, como querem políticos de ultradireita que se projetam na vida pública justamente por causa do discurso extremista e nazifascista, mas, por outro lado, tampouco é certo vituperar aqueles que defendem que todos sejam, de fato, iguais aos olhos da lei e paguem por seus desvios, tenham a origem que tiverem e independentemente da posição que ocupem na pirâmide socioeconômica.

“Zona de Confronto” (2020) foi lançado fora dos Estados Unidos com o sugestivo título de “Shorta”, gíria árabe que, como se lê no primeiro quadro do trabalho dos diretores dinamarqueses Anders Olholm e Federik Louis Hviid, se refere a agentes da polícia. Prematuramente, fica claro a que espécie de filme se vai assistir. Hviid e Olholm são dois homens brancos, instruídos e endinheirados que, por uma conjunção de justificativas, viram-se impelidos a conhecer melhor como operam os destacamentos da polícia de Copenhague, mas não no centro ou nos bairros nobres da capital da Dinamarca, mas no subúrbio, de forte presença paquistanesa, argelina, marroquina. A “escória de Mohammed”, como parte da população nativa se refere aos árabes — malgrado, como todo mundo deve saber, nem todo árabe ser muçulmano, com a agravante de muitos terem nascido em solo dinamarquês —, está dando trabalho. A obrigação da polícia é mantê-los na rédea curta.

“Zona de Confronto” acompanha o cotidiano no trabalho da polícia de Copenhague na figura de Mike Andersen e Jens Høyer, dois policiais que cortam um dobrado na patrulha de rua todo santo dia. Mais experiente, Andersen, vivido por Jacob Hauberg Lohmann, já está habituado aos achaques dos superiores, os esquemas para faturar algum por fora, as corrupções ativa e passiva, o suborno, toda sorte de interferência de políticos de colorações ideológicas as mais diversas — o que ainda escandaliza Høyer, interpretado por Simon Sears, que não só se preserva íntegro como deixa no ar algumas ironias quanto ao comportamento do parceiro. Apesar da pouca afinidade moral, os dois protagonistas se dão bem e servem de contraponto psicológico um ao outro. Aos poucos, Andersen mostra ao colega que é loucura querer tomar a polícia à luz de uma amiga da sociedade: a polícia está mais para uma mãe, e uma mãe que se preza não é amiga de seus filhos, mas sua professora, censora e, se preciso, seu carrasco. Høyer, por seu turno, empenha-se em despertar no outro a capacidade de refrear seus impulsos ou, pelo menos, não se exceder nos castigos. Despachados a fazer a ronda em Svalegarden, gueto de imigrantes árabes, o tira mais novo vai concluir na prática que seus conselhos não surtem efeito na intensidade desejável.

Ao avistar Amos, morador de Svalegarden já conhecido das autoridades, Andersen acelera a viatura, para ao lado do garoto e vai com tudo. Suspeitando que o personagem de Tarek Zayat já se preparasse para alguma operação delitiva, o policial começa a revistá-lo, e Amos não se intimida. Indaga-o sobre o porquê de estarem sempre por perto, sempre tão hostis, e, pelo sim, pelo não, saca o celular e filma toda a cena. Contando agora com o pretexto ideal, Andersen leva o procedimento até o fim, deixando Amos só de cueca no meio da rua, o que, por óbvio, o enfurece. Já sem o telefone, um grupo de pessoas sentadas por ali é que filma a revista, indignadas. Quando tudo acaba, o rapaz tem uma reação irrefletida, que gera mais truculência, e essa truculência vira contra os policiais, perseguidos e encurralados na lavanderia de um prédio de apartamentos populares. Quando ficam sabendo que o personagem de Lohmann é o responsável pela morte de Talib Ben Hassi, de Jack Pedersen, durante uma inspeção pessoal, da mesma forma que Floyd — os diretores até incluem no roteiro o “Não consigo respirar!” dito pelo americano —, a tensão sai do controle definitivamente.

O arco da dubiedade moral de Andersen degringola no componente de violência física que faltava em “Zona de Confronto” e o sangue, inclusive o do rottweiler que persegue o policial no corredor do apartamento de Amos, passa a se fazer cada vez mais presente. O curioso é que a escalada de violência no longa não contribui em nada para o aperfeiçoamento do conflito, e fica longe de um clímax. A sequência ao episódio dá a entender que tudo vai mesmo continuar como sempre fora: a polícia, racista, xenófoba, reflexo da sociedade que a legitima, só tem por método de combate ao crime a suspeita irracional, motivada por preconceitos injustificáveis e contraproducentes, porque nunca são tolerados pelos tribunais e, também por essa razão, o feitiço vira contra o feiticeiro. O que falta até que se concluam os 108 minutos de projeção mais entedia que mesmeriza, e, destarte, o drama de Amos, majorado com a entrada em cena de Abia, papel de Özlem Saglanmak, resta meio comprometido pela falta de unidade narrativa.

Olholm e Hviid abrem a discussão acerca dos problemas fundamentais da polícia, sem dúvida uma decisão louvável, mas que requer parcimônia, empenho, vontade e paixão.  Próximo ao desfecho, comovente, os diretores talvez tenham querido dar a ideia — lírica, mas irreal — de que homens como Andersen têm fôlego limitado na polícia. A verdade é que esses maus profissionais dispõem de um instinto de sobrevivência muito aguçado, que lhes permite trilhar uma longa carreira e fazer fortuna nas corporações a que estão vinculados. Até que a casa cai.


Filme: Zona de Confronto
Direção: Anders Olholm e Federik Louis Hviid
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Crime/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.