Suspense com Kate Winslet na Netflix é um dos filmes mais brutais da história do cinema Divulgação / Universal Pictures

Suspense com Kate Winslet na Netflix é um dos filmes mais brutais da história do cinema

A vida é perigosamente irônica. Cidadão de índole escorreita, sabedor de seus direitos e cumpridor das obrigações que deles advêm, um professor envolvido na luta contra a pena capital vai parar no corredor da morte, vítima do ardil de uma aluna com quem tem um momento sensual. Por evidente, esse homem é envolto pela névoa de tristeza que aprisiona seu espírito, condição que prevalece mesmo quando uma jornalista é destacada para cobrir a história e os dois passam a confidenciar segredos entre si. A exploração de um cenário tão dramático e ao mesmo tempo tão cheio de mistério segue em frequente evolução, até que o mote do desmantelamento da justiça se avulta, conferindo uma atmosfera de tensão de outra natureza, essa, sim, de potencial filosófico muito mais cáustico. Revestido de uma ambivalência ousada, a história torna-se cada vez mais distante do que o público esperaria dela, especialmente aqueles que já não têm forcas para combater o vigor do politicamente correto, mas entenderam a mensagem e não abrem mão de deixar bastante claro seu posicionamento.

Alan Parker (1944-2020) apresenta o personagem-título de “A Vida de David Gale” (2003) como esse homem alquebrado pela humilhação do cárcere, mas forte o bastante para mostrar sua obstinação e provar sua inocência — ou fazer com que sua versão seja a oficial. Existe uma pronunciada delicadeza semântica no que Parker intenta transmitir a seu espectador, filigrana que alcança seu paroxismo na derradeira sequência do roteiro de Charles Randolph, capaz de revelar a verdadeira natureza do protagonista, personificado com o brilho habitual de Kevin Spacey, um professor universitário laureado e pai de família amoroso e acima de qualquer suspeita. Spacey faz de Gale um dos tipos fanais da história do cinema, precisamente por saber como poucos o momento exato de virar a chave a fim de deixar à mostra a face obscura, pesada, indefinida de seu personagem ou, ao contrário, empurrá-la para um abismo que só ele mesmo acessa e mantê-la ali, pelo menos até que a trama exija que reapareça, passagens sempre epifânicas e muito oportunas, em que o ator se assenhora do filme.

Implicado na armadilha de escândalo sexual e política que em alguma medida ele mesmo se preparou depois de aceitar a investida de Berlin, a aluna vivida por Rhona Mitra, e fazer sexo com ela durante uma festa promovida pelos estudantes. Como um ginasiano impetuoso que há anos sonha om o momento em que estará a sós com a professora mais sexy da escola e, assim, terá a coragem necessária para se declarar e saciar seu apetite, Gale avança sobre Berlin, acedendo a todas as suas ordens — e esse é o começo de sua perdição. A moça o acusa de estupro, e o caso recebe ampla coberta da imprensa, representada por Bitsey Bloom, interpretada por Kate Winslet, e seu estagiário Zack Stemmons, de Gabriel Mann, cada vez mais convictos de que Gale, militante de causas humanitárias, em especial a que prega a revogação da pena de morte no Texas, fora mesmo enredado num plano expedito e diabólico, orquestrado por gente como Dusty Wright, o fundamentalista de ultradireita de Matt Craven. Quando Sharon, a mulher de Gale vivida por Elizabeth Gast, aparece morta, os defensores da manutenção da pena capital encontram a oportunidade ideal para sepultar de uma vez por todas a luta por melhorias no ordenamento jurídico dos Estados Unidos e calar para sempre uma de suas vozes mais atuantes. 

Quase década e meia separa um Kevin Spacey que, a exemplo de seu personagem, parecia blindado de qualquer traço de ilegalidade do homem enxovalhado por escândalos sexuais contra menores de idade, ocorridos ao longo dos anos 1980, ou seja, quando da estreia de “A Vida de David Gale” o ator já era um rematado predador da castidade alheia. Não deixa de ter certa graça a coincidência, bem como talvez os dois episódios estejam imbricados em alguma proporção. Advogados alcoólatras, juízes alheios às demandas sociais, réus submetidos a sessões de tortura nas dependências de determinadas cortes — mormente se negros —, um mecanismo perverso iniciado por uma polícia que parece se orgulhar de seu despreparo, explicam fenômenos como a longeva carreira de Spacey, que a despeito do talento soberbo, é um psicopata de alto calibre. Ao contrário do óbvio, o cinismo da última cena do longa se presta a testificar o engodo da premissa central. A pena de morte não extermina facínoras, mas só ameniza as iniquidades que esconde. Pior do que passar boa parte do filme se condoendo por David Gale é saber de gente que tem pena de Kevin Spacey, mais uma vítima da sanguissedenta Hollywood.


Filme: A Vida de David Gale
Direção: Alan Parker
Ano: 2003
Gêneros: Drama/Thriller 
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.