O filme brilhante da Netflix que você não assistiu, mas deveria Krzysztof Wiktor / Netflix

O filme brilhante da Netflix que você não assistiu, mas deveria

A Guerra Fria (1947-1991) continua dando mote a tramas de suspense de matizes os mais variados. Em maior ou menor grau, todas frisam as hostilidades entre os Estados Unidos e a então União Soviética, que professava o socialismo como o portal para a utopia de uma humanidade com mais justiça social. É difícil cravar com precisão absoluta se os próprios soviéticos criam na fantasia de um mundo verdadeiramente socialista, como o idealizaram Marx e Engels, a começar pelos próceres daquela terra prometida, que gozavam de todos os privilégios do capitalismo vigente em quase todo o globo, negados ao cidadão comum, sem ao menos disfarçar. O socialismo não resistiu ao choque de realidade do mundo pós-moderno, bem como a União Soviética também teve de recuar de suas pretensões totalitárias para além de seus domínios e se render à economia liberal, o que não significou a inserção do povo no mercado consumidor, mas deu a chance dos oligarcas de turno ficarem ainda mais prósperos, espoliando o lucro não publicizado das grandes estatais, sem mencionar a corrupção, endêmica nessas empresas. Essas humanas misérias, tão comezinhas quanto lancinantes, só vem contestar uma vez mais a máxima de Brecht que lamenta que um país necessite de heróis. Não só países clamam por salvadores: o mundo inteiro os espera, ansiando que encarnem os ideais de que o homem será dependente até o fim dos tempos.

O polonês Łukasz Kośmicki escancara o apetite da humanidade por sonho pela perspectiva de um anti-herói com um dom especial, mas a reboque de seus demônios em “Partida Fria” (2019), metáfora sobre as transformações a que governos de todo o planeta tiveram de se sujeitar, acossados por indivíduos cada vez mais cansados de deuses de barro. Em outubro de 1962, ano em que Kośmicki e Marcel Sawicki ambientam o roteiro, o mundo vivia o auge das tensões entre Estados Unidos e União Soviética e a consequente escalada das tensões rumo a um conflito nuclear sem precedentes na história. Um Bill Pullman completamente entregue ao personagem, serve de mestre de cerimônias à trama central, que esmiúça a atividade de uma delegação de espiões norte-americanos infiltrados num campeonato de xadrez na Polônia. No papel de Joshua Mansky, Pullman dá ao enredo a dimensão de bom suspense, escondendo ele próprio segredos de um temperamento perigosamente vulnerável. Esse gênio da matemática e ex-professor de Princeton sofre com um alcoolismo renitente, potencializado pelas crises de ansiedade que evidenciam sua insegurança emocional. Seu quadro de dependência começa a se manifestar com ainda mais intensidade ao saber que terá de substituir o professor Konigsberg, vítima de um derrame em circunstâncias misteriosas dias antes. Mansky suspeita que a competição é um mero jogo de cartas marcadas, em que os russos, representados por Alexander Gavrylov, de Jewgeni Wladimirowitsch Sidichin, saem com vantagem, até que os Estados Unidos sejam irremediavelmente humilhados diante do mundo todo. Mesmo assim, é obrigado a se sacrificar, porque qualquer sombra de desistência no horizonte seria muito mais danosa à imagem do país — e, de preferência, descobrir uma maneira de contornar a ofensiva do inimigo e se sagrar o grande vitorioso.

Enquanto vai abrindo a massa para incluir o ingrediente principal, a provável instalação de ogivas nucleares russas em em Cuba, Kośmicki explora os episódios de instabilidade de Mansky, pouco a pouco mais fora de si. Entremeadas às cenas que registram o torneio e seus bastidores, o espectador se depara com sequências em que Mansky é mostrado numa cela de vidro, a alguns centímetros do chão, para afastar o risco de fuga, interpelado pela agente Stone, vivida por Lotte Verbeek, e seu colega White, de James Bloor. Com a analepse, o diretor enfatiza o pavor do personagem de Pullman quanto a tomar parte na disputa contra Gavrylov, que por sua vez é observado com lupa pelo general Krutov, o típico vilão do excelente Alexei Walerjewitsch Serebrjakow. O xadrez se presta como alegoria óbvia da disputa das duas nações mais poderosas da Terra pela hegemonia político-militar mundial, num vaivém de drama e suspense, suavizado a dada altura pela comicidade de Robert Wabich como o polonês beberrão e cínico que se locupleta com as prebendas do regime, mas dedica-lhe um devotado menosprezo.

A referência imediata logo nos primeiros minutos é a “O Dono do Jogo” (2014), de Edward Zwick, mas o filme de Kośmicki tem qualidades próprias, a começar pelo jeito desabotoado de lidar com assunto tão grave. Diferentemente do protagonista do filme de Zwick não se leva a sério e tem um único propósito, e não é o de vencer a batalha cerebral contra Gavrylov. À fotografia de Pawel Edelman, primorosa e acertada ao destacar o sépia de cinzas e marrons esmaecidos a fim de evocar um passado melancólico, são acrescidos diálogos em polonês e russo, cuidado que traz factualidade à trama, ficcional. A Guerra Fria se estendeu para além de 8 de dezembro de 1987, quando o presidente americano Ronald Reagan (1911-2004) e o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev, assinaram o INF, tratado que bania intenções de ataque nuclear de parte a parte, e só foi encerrada oficialmente em 26 de dezembro de 1991. Em 4 de março de 2019, alegando violações do acordo pelos Estados Unidos, o presidente russo Vladimir Putin, declarou nula a validade do documento. Cinco meses depois, em 2 de agosto de 2019, o presidente Donald Trump tomou a mesma decisão, deixando no ar a chance de novos enfrentamentos entre os dois países, agravada pela invasão da Ucrânia por tropas do Exército russo em 24 de fevereiro de 2022.


Filme: Partida Fria
Direção: Łukasz Kośmicki
Ano: 2019
Gêneros: Thriller/Espionagem
Nota: 9/10