Desde que vemos a luz do mundo pela primeira vez, estamos todos correndo contra o relógio na esperança de ter alguma chance de sermos felizes. Essa ânsia pela felicidade, patológica e em muitos casos criminosa quando tomada sob o argumento de que deve ser atingida a qualquer custo, decerto é um dos venenos da vida pós-moderna, esse charco de apertura em que o homem se banha com gosto, e depois de certa idade, episódios em que indivíduos aparentemente sensatos tomam decisões ridículas ou, tanto pior, perversas, tudo em nome do tal direito de ser são frequentes. Querendo reparações atitudes erradas ao longo de toda uma vida, opta-se por um caminho ilusório, de uma felicidade farsesca, artificial, capciosa, cujos ardis vão deixando rastros de desdita na estrada de quem se lança nesse abismo e ainda para aqueles que observam o grotesco espetáculo de muito perto, mas não podem fazer coisa alguma. O sofrimento que advém de um comportamento que, a priori, só visava ao bem é tão malevolamente danoso porque esse pretenso bem contemplava apenas uma variável de uma equação complexa, cuja resolução é especialmente intrincada por abranger fatores que se desdobram em muitos outros tantos.
Incensado no Festival Internacional de Cinema de Toronto, o TIFF, “Gente de Bem” (2018) gira em torno destas e de várias outras questões. Tal como em “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2003), de Tim Burton, Anders Hill, o protagonista do filme de Nicole Holofcener vivido pelo carismático Ben Mendelsohn, se torna um desastre incessante a partir do momento em que conclui, sem se importar muito com o método, que sua vida precisa de um ponto de virada urgentemente. Para ele, isso significa dar um fim à união de mais de três décadas, que considera irremediavelmente estagnada, e separar-se da mulher, Helene, da sempre ótima Edie Falco; aposentar-se do emprego maçante no mercado financeiro, o que faz sem nenhum drama de consciência — e nisso está absolutamente certo —; arrumar tempo para fazer mais atividade física, talvez maneirar na bebida, no que falha miseravelmente; e dedicar-se a por em ordem a casa nova, frequentando lojas de artigos de decoração a fim de ocupar uma estante, de preferência também reservando tempo para flertar com vendedoras oferecidas e levá-las para a cama, ainda que o ato sexual não se consuma. Pelo que se vê, a vida de Anders está um caos e ele, conforme já se poderia esperar, dá um jeito de tornar sua situação um pouco mais ruinosa, tentando ser o pai zeloso, papel pelo qual nunca se interessara, para Preston, outro grande desempenho, de Thomas Mann, aos 47 do segundo tempo. Para não falar da amizade com Charlie, de Charlie Tahan, como Preston, um ex-viciado em recuperação, esse, sim, um relacionamento assaz dramático. Visivelmente desconfortável com a proeminência do namorado de Helene, personagem de Bill Camp, que primeiro assume o lugar de figura masculina nas vidas da agora ex-mulher e do filho, e acaba se mostrando disposto a muito mais do que isso, Anders paulatinamente se dá conta de que pode ter cometido o maior equívoco de sua vida, desacerto para o qual talvez não haja reparação possível. Sem seu emprego, perdida sua família, o relacionamento com o filho de todo conturbado, sem um propósito, quiçá nem se levante outra vez. O roteiro de Holofcener assinala o desalinho mental de seu personagem central ao apostar em sequências como a que Anders, numa solidão pungente, prepara a decoração de fim de ano da casa em que passa a morar, vazia, gelada, hostil, a própria antítese do Natal. Da mesma forma que ele, que já passara tantos natais tão diferentes daquele, tornara-se também a negação do homem que fora há até muito pouco tempo.
As escolhas estilísticas e narrativas de Nicole Holofcener, que encampa uma história tão comum que soa banal — e por essa razão mesma tão humana e digna —, prestam-se justamente a dar algo de sofisticado a toda essa naturalidade da vida como ela é. A diretora acerta em cheio ao permitir que essa aura de desencanto torne-se palpável ao espectador, mormente num tempo de tanta felicidade fabricada, pronta para usar, antinatural. Quebrar esse gelo é coisa para gente de fato profissional, e destarte “Gente de Bem” se mostra para muito além da superfície.
Filme: Gente de Bem
Direção: Nicole Holofcener
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10