Documentário na Netflix investiga os últimos momentos de Marilyn Monroe, morta em 1962 aos 36 anos Divulgação / Netflix

Documentário na Netflix investiga os últimos momentos de Marilyn Monroe, morta em 1962 aos 36 anos

Marilyn Monroe não poderia mesmo ser Norma Jeane Mortenson, ou Norma Jeane Baker. A nova vida que se lhe despontava, cheia das promessas de glória que se concretizaram, exigia também outro nome, à altura do fenômeno que a indústria cinematográfica pretendia fazer dela — e fez mesmo —, disso ela sempre soube. A identidade que consagrou o mito da loira fatal, sempre disposta a mais uma aventura, meio inconsequente, meio pueril, meio vulgar, mas nunca gratuita e jamais despretensiosa, contou com a colaboração de Ben Lyon (1901-1979), ex-ator de prestígio por causa da série “Hell’s Angels” que migrou para os bastidores e se tornou um dos executivos mais influentes da 20th Century Fox. A junção do Marilyn, de Marilyn Miller (1898-1936), estrela de musicais da Broadway, sugerido por Lyon, ao Monroe resgatado do sobrenome da avó materna, sacramentaram a aura de uma divindade da tela grande ao longo dos anos 1940, 1950 e começo dos 1960, mais precisamente até 1962, quando Marilyn Monroe, linda, famosa milionária — e jovem —, foi brilhar noutra freguesia. Era 4 de agosto. Marilyn contava 36 anos.

Nascida num 1° de junho de 1926 especialmente ensolarado em Los Angeles, não custou muito até que Norma Jeane se tornasse Marilyn Monroe, ou apenas Marilyn — essa é a impressão, ligeira e falsa que se pode ter até um exame um pouco mais cuidadoso de sua vida anônima, um zelo que o docudrama “O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas” (2022) demonstra em pormenores quase invisíveis. O material, sessenta anos de pesquisa reunidos em pouco mais de cem minutos, deixa uma pulga atrás da orelha do espectador mais cético, tanto pior se fã da biografada. Que ainda hoje restam dúvidas quiçá propositais acerca do desaparecimento de Marilyn, depois de uma suposta overdose por barbitúricos na casa em que vivia em Brentwood com a governanta, Eunice Murray, todos sabem. É sobre episódios como esse que a diretora Emma Cooper tenta lançar luz, valendo-se principalmente das pistas já fornecidas por  “Goddess: The Secret Lives of Marilyn Monroe” (1985), biografia do jornalista investigativo irlandês Anthony Summers publicada pela Onyx apenas em inglês.

Descontada a falta de criatividade dos títulos, tanto no pioneiro trabalho de Summers como na tentativa arrojada de Cooper de dar sequência a seus esforços, “O Mistério de Marilyn Monroe” faz justiça a sua pretensão de apresentar facetas da mulher mais desejada do seu tempo que, malgrado imaginadas, nunca haviam deixado as sombras. As tais gravações inéditas revelam depoimentos de personagens que, embora colaterais, chegam bem perto de aclarar o mistério a que o infeliz nome da produção alude. Miseravelmente infeliz apesar do vácuo de sucesso, repleto de passagens faustosas, Marilyn foi pelos fugazes quinze anos em que frequentou os estúdios e as altas rodas de Hollywood a mesma menina assustadiça do primeiro filme, “Sua Alteza, a Secretária” (1947), dirigido por George Seaton (1911-1979), ou de antes ainda, quando pulava de orfanatos para lares adotivos (e vice-versa), sendo que tinha mãe. Gladys Pearl Baker foi o prólogo de sua trajetória infeliz. Cumprindo um périplo semelhante ao da filha, mas por manicômios e clínicas especializadas em “esgotamento nervoso”, Baker não tinha estofo mental, tampouco parâmetros socioeducacionais para proporcionar, nem a Marilyn nem aos outros dois filhos, Robert Jasper Kermitt Baker (1918-1933) e Berniece Baker Miracle (1919-2014), seus meios-irmãos, a criação capaz de fazer deles pessoas minimamente estáveis. Sem elucubrações freudianas baratas, isso explica muita coisa.

As conclusões mais importantes do documentário, pontuado por lamentáveis reconstituições em que atores dublam o conteúdo das fitas, voltam a carga para as muitas imprecisões que rondam a morte de Marilyn passadas seis décadas. Para começo, ninguém até hoje ousa cravar a causa da morte da atriz, num ostracismo voluntário há um ano e meio, desde que estrelara “Os Desajustados”, de John Huston, lançado em 1° de fevereiro de 1961. Excetuando-se a evidência irrefutável de que Marilyn se intoxicara mortalmente após a ingestão de quarenta pílulas para dormir, tudo o mais são meras conjecturas. Sem saber mais como lidar com a legião de fantasmas que a assombravam desde tenra idade — muitos deles vindos de casos reais de abusos psicológico e sexual numa das tantas instituições pelas quais passou —, Marilyn se determinara a dar cabo da própria vida, ou o envolvimento com os Kennedy (primeiro Bobby, o procurador-geral, depois John, chamado de Jack, eleito presidente em 1961 e executado dois anos depois, transcorridos quinze meses do fim trágico da maior starlet do cinema) teria algum peso sobre seu destino? Lamentavelmente, muito do que se desejaria saber a respeito do furacão Marilyn Monroe foi encerrado junto com seu cadáver, e nem Anthony Summers nem Emma Cooper — e pelo visto nenhum outro bem-intencionado pesquisador — há de extrair dela, instalada para sempre numa cripta singela no cemitério de Pierce Brothers, uma resposta definitiva. Deixemos Marilyn em paz.


Filme: O Mistério de Marilyn Monroe: Gravações Inéditas
Direção: Emma Cooper
Ano: 2022
Gênero: Documentário/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.