Sinistro e contundente, obra-prima na Netflix vai te conduzir por uma experiência visceral e agonizante Divulgação / Zee Studios

Sinistro e contundente, obra-prima na Netflix vai te conduzir por uma experiência visceral e agonizante

Ao longo dos anos, Bollywood tornou-se merecedora do epíteto que alude a sua principal concorrente. O cinema da Índia chega facilmente à marca de cerca de dois mil filmes produzidos por ano, mas o que impressiona mesmo não são os números. Histórias autênticas, que privilegiam narrativas que retratam o dia a dia do povo indiano, dão o tom na indústria cinematográfica hindu, de thrillers psicológicos bem temperados com elementos de terror, a exemplo de “Kahaani” (2012), de Sujoy Ghosh, a musicais deliciosamente oníricos, caso de “O Grande Passo” (2020), dirigido por Sooni Taraporevala, e “Como Estrelas na Terra” (2007), de Aamir Khan e Amole Gupte. Há, por óbvio, quem não ache graça na profusão de cores, na explosão de ruídos que uma única produção bollywoodiana encerra, muitas vezes, frise-se, por grosso preconceito. Também é forçoso dizer que há ocasiões em que esses filmes deixam um rastro de desacertos estético-dramatúrgicos duros de engolir, mas dada a abastança da safra, com muito mais exemplos positivos que tramas esquecíveis — e que discutem assuntos que muitas vezes clamam por atenção —, o saldo fica no azul.

Falar da justeza ou não das castas na Índia é meter a mão na cumbuca de uma polêmica que, além de não conduzir a lugar algum, pode ainda degringolar em muitas outras controvérsias, o que “Artigo 15” faz com gosto. O título do filme de Anubhav Sinha, uma clara referência ao instrumento jurídico que, em teoria, veda a segregação social baseada em critérios religiosos, raciais, de sexo, local de nascimento e, o que importa aqui, casta, é, como se diz no Brasil, modelo de lei que não pega. É difícil para um ocidental, sobretudo se brasileiro, compreender os meandros de uma tradição milenar, escandalosamente anacrônica, mas vigendo a toda prova em pleno século 21. Pensando bem, não é tão difícil assim, não. Talvez os indianos apenas exteriorizem uma cultura que no Brasil resta cinicamente velada pelo mito quiçá invencível da democracia racial, deixando claro a alguém desde seus verdes anos que, a depender de onde venha, do sobrenome que carregue, do nome de seus pais e do sangue que corre em suas veias, será uma batalha inglória ansiar por oportunidades de estudar, candidatar-se a bons empregos e, literalmente, sair da lama. Isso brasileiros entendemos rápido.

O roteiro, uma parceria entre Sinha e Gaurav Solanki, expõe o sistema de castas como uma malfadada tentativa de separar hinduístas de praticantes de outras religiões, e até aí, goste-se ou não, não há nada de mais: o hinduísmo é a religião oficial da Índia até hoje, e a possibilidade de que o país seja um Estado laico algum dia é muito remota. O delicado cerne da questão é que a ideia de classificar cidadãos de acordo com a origem — dada por Deus, segundo a doutrina — espraiou-se para todos os segmentos do tecido social, tornando a Índia uma das nações mais desiguais e atrasadas do mundo. As castas remontam a 600 a.C., não constam da moderna Constituição indiana, outorgada em 26 de janeiro de 1950, apenas três anos depois da proclamação da independência do Império britânico, em 15 de agosto de 1947, mas não sai da vida prática do país, uma vez que adquiriu caráter de tradição, diligentemente passada de pai para filho. Malgrado escolhas individuais equivocadas, cabe ao aparato legal aplicar o escrito. E é aí que as coisas se complicam um tanto.

O comissário Ayaan Ranjan, de Ayushmann Khurrana, é encarregado de investigar o caso de duas garotas estupradas e mortas na cidade de Budaun, em 2014, cinco anos antes da estreia de “Artigo 15”. Ou seja, um dia de trabalho como outro qualquer, não fosse um detalhe: elas eram dálites, que no Ocidente se convencionou chamar intocáveis, membros da casta mais baixa dentre as quatro oficialmente admitidas, brahmins, kshatriyas, vaishyas e shudras. Indignos de realizar qualquer trabalho que vá além de varrer ruas e desentupir fossas, quando um intocável some, ninguém dá por sua falta, muito menos se importa em saber por quê. Voltando de uma temporada no exterior, onde se reafirma para ele a natureza equivocada das castas, Ranjan acredita que não cabe a ele decidir se os crimes devem ou não ser devidamente apurados e esclarecidos tomando por base a premissa cruel de que dálites merecem mesmo o mais desumano dos castigos. Ele simplesmente não admite que um delito que o Estado lhe confia fique sem a justa punição.

Baseado num acontecimento real, o longa de Sinha se presta a reconstituir os últimos momentos das vítimas, quando o diretor dá a guinada para o suspense, que continua até o desfecho farsesco. Gaura, personagem de Sayani Gupta e Nishad, interpretado por Mohammed Zeeshan Ayyub, são responsáveis pelas passagens mais emocionalmente pródigas do filme por entenderem a proposta de denúncia e crítica social do enredo, sem, contudo, abdicar da graciosidade imanente aos tipos a que dão vida. Conforme o texto de Sinha e Solanki começa a insinuar, as moças, primas, estão apaixonadas e a descoberta desse amor proibido foi a causa de sua perdição. Uma das duas é morta, enforcada numa árvore, junto com a irmã de uma delas, enquanto a outra consegue escapar e se pôr a salvo, até que Ranjan a resgate. 

Incorporando à perfeição essa figura central de boa parte das produções hindus, a do herói (quase) sem defeitos, abnegado, até meio inconsequente quando se trata de cumprir seu dever, Khurrana imprime ao personagem essa grandeza, mesmo dotado de uma aparência acintosamente banal, ou por isso mesmo. À medida que a história avança, são adicionados elementos a fim de enaltecer a aura noir da narrativa, como imprecisões quanto à forma como os assassinatos teriam sido cometidos, além da possível participação de familiares das mortas nos crimes. Disputando com o comissário a encarnação de mocinho do longa, o personagem de Ayyub personifica muito mais o espírito de valorização da ideologia e do sonho, ao se saber que Nishad, um aluno brilhante, interrompera os estudos a fim de defender aqueles seus patrícios aprisionados nas castas inferiores numa Índia que os quer calados e quietos. Abaixo dos pés de Brahma.

Esses altos e baixos — que ainda deixam espaço para a sátira, presente no enfrentamento do personagem de Khurrana junto a Brahmdutt Singh, o superintendente interpretado por Manoj Pahwa — reforçam a intenção de Anubhav Sinha de fugir ao clichê a qualquer custo. A comparação com filmes congêneres, não de Bollywood, mas da indústria cinematográfica ocidental, aponta que o filme resvala, sim, no lugar-comum por inúmeras vezes, mas nunca sem um propósito oculto que se revela a tempo. Como se se pretendesse um trabalho que usa o cinema apenas como meio para discussões sempre urgentíssimas na conjuntura indiana, “Artigo 15” se prova uma das mais exitosas experiências filosófico-artísticas daquele país.


Filme: Artigo 15
Direção: Anubhav Sinha
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.