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História real escancara interferência da família sobre autonomia do idoso, na Netflix Joe Ekonen / Netflix

História real escancara interferência da família sobre autonomia do idoso, na Netflix

“27 Noites” não pede licença para tocar numa ferida social antiga: o desconforto coletivo diante da velhice que se recusa a pedir desculpas por existir. Desde os primeiros minutos, o filme deixa claro que a história não gira em torno de um suposto colapso mental, mas de um conflito moral. A protagonista, interpretada por Graciela Borges, tem 83 anos, dinheiro próprio, amigos excêntricos e um apetite intacto pela vida. Isso basta para que as filhas, vividas com frieza calculada por suas intérpretes, decidam interná-la à força numa clínica psiquiátrica, sob o pretexto de protegê-la. A acusação de demência funciona como verniz legal para um gesto que nasce, na verdade, do incômodo com a autonomia materna. O roteiro nunca tenta suavizar esse gesto. Ele o encara como o que é: uma tentativa de domesticação.

O corpo como território político

Dentro da instituição, a personagem de Borges não perde a lucidez; perde o direito sobre o próprio corpo. Horários, remédios, portas trancadas e vigilância constante passam a definir sua rotina. A encenação transforma esse espaço num microcosmo disciplinador, onde envelhecer significa obedecer. É nesse ambiente que o filme encontra sua força política mais clara: a velhice não aparece como declínio, mas como ameaça a uma ordem que prefere idosos dóceis, silenciosos e gratos. Cada reação da protagonista, cada recusa em aceitar o protocolo imposto, funciona como um pequeno ato de insubordinação. Não há heroísmo clássico, apenas uma mulher que se recusa a desaparecer.

A entrada de Humberto Tortonese muda o tom do filme sem quebrar sua tensão. Seu personagem, amigo boêmio e afetuoso, encarna uma forma de cuidado que não passa pelo controle. Tortonese evita caricaturas: sua atuação é atravessada por humor melancólico, uma espécie de alegria cansada que reconhece o absurdo da situação sem perder a ternura. É através dele e de outros amigos que a protagonista articula sua tentativa de sair da clínica. Esses personagens não surgem como salvadores, mas como testemunhas de uma vida que ainda pulsa. O afeto aqui não infantiliza; ele legitima.

As filhas não são vilãs unidimensionais. O texto lhes concede motivações reconhecíveis: medo de golpes, vergonha social, ansiedade diante da imprevisibilidade. Ainda assim, o filme não relativiza suas escolhas. Ao recorrerem ao Estado e à psiquiatria para conter a mãe, elas reproduzem uma lógica antiga, em que a diferença precisa ser corrigida. O especialista nomeado pelo tribunal, encarregado de avaliar a sanidade da idosa, funciona como figura simbólica dessa engrenagem: alguém chamado a decidir se uma mulher livre é, por definição, uma mulher incapaz.

Humor, dor e persistência

Há momentos de comédia, mas nunca como alívio fácil. O riso nasce do contraste entre a vitalidade da protagonista e a rigidez das normas que tentam enquadrá-la. Essa oscilação entre leveza e angústia sustenta o ritmo do filme e impede que ele escorregue para o melodrama. Quando a personagem finalmente confronta as filhas e exige um pedido de desculpas pelas 27 noites de confinamento, não há catarse exagerada. O que existe é desgaste, cansaço e uma dignidade que sobrevive apesar de tudo.

Inspirado em fatos reais ocorridos na Argentina, “27 Noites” não busca conforto moral. Ele encerra deixando uma pergunta incômoda: até que ponto a sociedade aceita a liberdade quando ela vem de um corpo velho? Ao recusar finais reconfortantes, o filme insiste na ideia de que envelhecer não deveria significar renunciar ao desejo. Essa recusa, simples e radical, é o que faz a história permanecer muito depois do último corte.

Filme: 27 Noites
Diretor: Daniel Hendler
Ano: 2025
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★