“Império do Sol” não começa com bombas, mas com porcelanas, jardins bem cuidados e uma infância blindada pela lógica colonial britânica em Xangai. Jim Graham, vivido por um Christian Bale ainda criança, circula por esse microcosmo com a naturalidade de quem nunca precisou formular perguntas incômodas. Spielberg constrói esse início como um falso equilíbrio: tudo parece sólido, mas depende de forças políticas que Jim sequer sabe nomear. Quando a invasão japonesa rompe esse arranjo, a perda dos pais não é apenas afetiva. É a quebra de um idioma social inteiro. Jim deixa de saber quem é porque o mundo que o definia deixa de existir. O filme se interessa menos pelo choque imediato e mais pelo vazio que vem depois, quando o privilégio se revela não como proteção moral, mas como anestesia.
Separado da família, Jim atravessa uma cidade em colapso até ser levado a um campo de internamento. Ali, a infância não acaba de maneira simbólica; ela é substituída por um pragmatismo seco. A relação com Basie, interpretado por John Malkovich, funciona como uma aula improvisada de cinismo: sobreviver exige cálculo, não inocência. Jim aprende rápido demais a negociar comida, afetos e lealdades. Spielberg acompanha esse aprendizado sem tentar purificá-lo. O garoto admira aviões de guerra, repete slogans, observa soldados japoneses com fascínio ambíguo. Nada disso é suavizado para conforto do espectador. A guerra não transforma Jim em alguém melhor, apenas mais atento às engrenagens que esmagam quem não aprende a se adaptar.
Tempo, deriva e desconforto
Muito se falou sobre a duração extensa do filme, especialmente no trecho central. O ritmo irregular não é acidente: ele reproduz a sensação de espera interminável do confinamento. A narrativa perde urgência porque a vida ali também perde contorno. Dias se repetem, alianças mudam, mortes deixam de causar espanto. Miranda Richardson, como a senhora Victor, encarna esse desgaste silencioso, enquanto Ben Stiller aparece em papel curto, quase irreconhecível, como mais um corpo deslocado naquele espaço suspenso. O filme recusa clímax tradicionais porque a experiência retratada não os oferece. A guerra, para Jim, não se organiza em batalhas, mas em lapsos de esperança seguidos de frustrações banais.
Memória, culpa e retorno
Quando o conflito se aproxima do fim, Jim já não é o menino do início, tampouco um adulto pleno. O reencontro com os pais evidencia essa fratura: não há reconciliação automática possível. Spielberg encerra o percurso com um desconforto raro em sua filmografia. A sobrevivência cobra um preço que não se paga com abraços. Jim volta ao ponto de partida carregando uma lucidez que ninguém ao redor parece disposto a compartilhar. “Império do Sol” é inesquecível porque não oferece alívio fácil. Ele insiste que certas experiências não edificam, apenas transformam, e que crescer, em contextos extremos, significa aprender a conviver com essa perda sem glamour.
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