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O assassinato brutal de Pier Paolo Pasolini: um crime que nunca foi solucionado Franco Vitale/Reporters Associati & Archivi/Mondadori Portfolio

O assassinato brutal de Pier Paolo Pasolini: um crime que nunca foi solucionado

Era madrugada de 2 de novembro de 1975, quando o cineasta Pier Paolo Pasolini, ícone do neorrealismo italiano, foi encontrado morto em Ostia. Espancado até seu corpo ficar irreconhecível, sua carne ainda exibia marcas de pneus, o que indicava que seu algoz teria o atropelado várias vezes. Parecia um aviso. Não havia nada de ritualístico, apenas excesso. A violência era exagerada demais para um crime passional. A brutalidade excedia qualquer explicação de uma briga ocasional. Ainda assim, o roteiro oficial do crime foi noticiado nos telejornais e papéis da época com uma rapidez obscena: um garoto de 17 anos, Giuseppe Pelosi, assumiu a culpa. A Itália respirava aliviada. Mas a resposta talvez tenha sido apenas oportuna.

Há crimes que certas pessoas não querem que sejam resolvidos. Eles existem como rachaduras abertas no tempo. O Estado, as autoridades, as forças de segurança fazem todo o possível para cicatrizar essas feridas às pressas, antes que alguém comece a perguntar demais. A morte de Pasolini se encaixa perfeitamente nessa categoria: não é apenas um assassinato, mas um ruído persistente na história.

Poeta, cineasta, ensaísta, marxista herege, homossexual assumido num país católico e moralista, ele transformou o cinema em instrumento político. Filmou corpos que não pediam permissão, rostos que o fascismo preferia apagar, desejos que a ordem social classificava como ameaça. Em “Accattone”, em “Mamma Roma”, em “Teorema”, em “Salò”, havia sempre o mesmo impulso: exibir em alto e bom som aquilo que os conservadores tentam esconder sob a palavra civilização.

Nos últimos anos de sua vida, Pasolini era considerado um sujeito perigoso. Não que fosse violento, mas porque suas ideias iam longe demais. Ele falava demais. Escrevia artigos que denunciavam a corrupção do Estado, o pacto silencioso entre os Poderes, a mídia, a indústria e o crime organizado. Ele dizia saber nomes, conexões, engrenagens. Dizia que o novo fascismo não marchava com botas, mas aparentava amigável e confiável nas televisões.

Décadas depois, Pelosi reapareceu afirmando que Pasolini havia sido assassinado por um grupo de homens ligados à extrema-direita. Ele não ganhou manchetes. Houve um silêncio institucional ensurdecedor. O caso não foi reaberto. Não houve urgência em buscar respostas. Como se a verdade, naquele ponto, fosse inconveniente. Afinal, Pasolini já estava morto e os mortos não podem abrir a boca mais.

Há algo de profundamente simbólico na maneira como ele foi apagado. Pasolini passou sua vida inteira filmando marginais nas periferias, e foi lá que ele morreu. Um intelectual que denunciava a violência institucional foi exterminado pelo próprio sistema que queria expor. Seu corpo virou território de disputa narrativa, mas foi reduzido ao menos óbvio: o silenciamento.

A morte de Pasolini não encerra nada. Ela pergunta. Pergunta quem decide quais vozes podem existir. Pergunta por que certas verdades precisam morrer. Pergunta por que é fácil transformar um crime político em um desvio moral individual. Sua ausência pesa. Pesa, porque Pasolini não foi apenas assassinado. Foi também arquivado. Enquanto sua morte não for explicada, seu cinema continuará carregando a sombra da lembrança de que, às vezes, filmar é um ato político perigoso demais.

Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.