Seres humanos sonhamos com o mundo perfeito, mas nos divertimos com os escombros de nossa vocação autossabotadora. O homem idealiza a paz, mas cultiva a guerra como se fosse sua segunda natureza. Quer a eternidade, embora desperdice o agora. Exalta a inocência, mas não abdica do gosto pelo poder, e fala em salvação coletiva perseguindo seus próprios interesses. Confunde esperança com desídia e fé com mandamentos, talvez porque expiar seus pecados exija responsabilidade, não só imaginação, e responsabilidade é um preço que a maioria não se dispõe a pagar. Verdadeira ode ao niilismo, “Éden” é um filme necessário, sobretudo em tempos de refinada hipocrisia e ignorância ufana. A descrença que arruína tudo é parte de nossa natureza desde Adão e Eva, como Ron Howard deixa claro ao jogar luz sobre uma história absurda e também plausível. Howard e o corroteirista Noah Pink partem de “Floreana” (1961), o livro de memórias de Margret Wittmer (1904-2000), e derivam para uma história em que reforçam a aura distópica do enredo e a índole vil de peregrinos em busca de um refúgio que pode ser o nada.
Floreana, uma das ilhas do arquipélago de Galápagos, é o destino do médico Friedrich Ritter (1884 [?] -1934) e sua companheira e ex-paciente, Dore Strauch, que resolveram desbravar aquele pedaço agreste do litoral do Equador tomados de um propósito altruísta. Corajosos, os dois saem de Berlim para a América do Sul certos de que podem fundar a sociedade perfeita, longe da tal civilização, e Ritter divulga o experimento nas cartas que ele envia para os jornais alemães. Seu intuito, claro, não é convencer ninguém de que Floreana é o éden possível, mas seu relato é sedutor o bastante para atrair Margret e o marido, Heinz Wittmer, eles desembarcam em Galápagos em 1932, junto com Harry, filho de um casamento anterior de Heinz. Howard escala a tensão valendo-se da fotografia cheia de verdes-musgo e marrons de Mathias Herndl, que pinta Floreana como um labirinto de mistérios nada divinos, e a trilha sonora de Hans Zimmer, subindo conforme a trama assume sua essência apocalíptica. Essa impressão fica ainda mais forte com a chegada de Eloise Bosquet de Wagner Wehrhorn, uma baronesa decadente que planeja construir um resort de luxo na ilha.
A partir desse encontro indesejado, o diretor costura os três núcleos expondo as diferenças e os pontos de contato entre Margret, Dore e Eloise, mulheres que de algum modo conseguiram dobrar homens ingênuos, vaidosos, arrogantes, e o filme involuntariamente resvala no “Gênesis” bíblico, embora a porção masculina dos habitantes de Floreana não seja nenhum exemplo de virtude, pelo contrário. Se por algum tempo, Sidney Sweeney e Vanessa Kirby dividem a atenção do público, Ana de Armas domina a cena ao sublinhar a índole manipuladora da Baronesa, que lê “O Retrato de Dorian Grey” (1890), de Oscar Wilde (1854-1900) numa evidência quase furtiva do que pretende. Enquanto o doutor Ritter interpretado por Jude Law, elenca as incontáveis nomenclaturas que as religiões dão para a recompensa divina aos justos — o Céu, para os católicos; o paraíso dos muçulmanos; o ansiado nirvana dos hindus —, mas crê mesmo é em Nietzsche e Schopenhauer, o Heinz de Daniel Brühl empenha-se em fazer daquele lugar pródigo de beleza e maldição seu novo lar, sob nítida influência da esposa. Howard conta com todas as letras a sorte de apenas um deles, quiçá o ponto mais alto de “Éden”, sem fugir à mensagem que brada nas entrelinhas desde o primeiro dos 130 minutos: a felicidade, para nós, é só um capricho.
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