Um começo em Londres dá a medida do que o filme quer da personagem: Lara Croft pedala, trabalha, cai, levanta, evita olhar para o retrato do pai. Em “Tomb Raider: A Origem”, Roar Uthaug dirige Alicia Vikander, Dominic West e Walton Goggins numa aventura em que a herdeira, ao recusar a fortuna familiar, precisa decidir se aceita a ausência de Richard Croft ou se segue as pistas deixadas por ele. O conflito central se arma nesse gesto: procurar o pai sem ser engolida pelo aparato que administra seu sobrenome.
A recusa não é pose, é defesa prática. Lara vive de bicos e treino, e a cada cobrança do escritório de família ela escolhe adiar a assinatura que confirmaria a morte do pai. Ana Miller, parceira de negócios de Richard, insiste na formalidade, paga fiança quando Lara se mete em confusão na rua e empurra a herdeira para a papelada. O obstáculo é duplo: o relógio de um patrimônio que pode ser vendido e a culpa de transformar afeto em contrato. Quando Lara decide abrir o túmulo do pai e entrar na câmara oculta, a negação vira busca.
A gravação deixada por Richard abre outra escolha, mais perigosa. Ele descreve a pesquisa sobre Himiko, a rainha mítica de Yamatai, e pede que tudo seja destruído. Lara ouve, absorve e decide fazer o oposto, porque a informação oferece o que o luto não entrega: direção. A consequência é imediata. Não é mais apenas encontrar o pai, é tocar num assunto que já atraiu outros interesses. A herança deixa de ser dinheiro e vira documento, mapa, prova, e a vida que era estreita em Londres se abre para um risco internacional.
Da herança ao mapa: a decisão de partir
Sem recursos, ela toma uma medida que não combina com fantasia de aventura: penhora o pingente de jade que guardava do pai. O dinheiro compra passagem e tentativa. Em Hong Kong, Lara procura o capitão Lu Ren, vivido por Daniel Wu, e negocia uma travessia até o Mar do Diabo, rumo a Yamatai. Ele aceita com relutância e condição, porque conhece o preço da rota. Ela aceita porque já queimou a ponte de volta. O obstáculo é logística, tempo, combustível, tripulação; o efeito é trocar um impasse doméstico por uma viagem sem garantias.
A travessia empurra a história para um registro em que o corpo decide antes da fala. O barco segue em direção à ilha, a situação degringola e Lara precisa improvisar para não desaparecer junto com a expedição. Uthaug filma o esforço com proximidade, como se a câmera respirasse no ritmo da personagem, e a ação ganha peso quando o espectador entende que cada metro custa. Água. Ferro. Cordas. Pedra. Pouca explicação. Muita reação. A aventura deixa de ser mapa e vira sobrevivência.
Trinity, Mathias Vogel e o cerco armado
Em terra, o cerco deixa de ser meteorologia e vira instituição armada. Mathias Vogel, o chefe da expedição vivido por Goggins, comanda homens e ferramentas e decide tratar Lara como instrumento para acelerar o que ele não consegue concluir. Trinity aparece como nome e como pressão: encontrar o que Richard estudava, controlar a descoberta, eliminar a incerteza. Lara decide não ser conduzida, mas o obstáculo é que ali todos têm armas, informação e hierarquia, e ela chega com insistência e pouco mais. Cada passo dela vira informação para quem observa.
O encontro com Richard, agora fora do mito e dentro do desgaste, muda o objetivo sem aliviar a tensão. Ele não é apenas pai desaparecido; é parte ativa de uma operação maior e carrega culpa por ter aberto uma trilha que outros seguiram. Lara precisa escolher se aceita o plano dele, que inclui destruir a pesquisa, ou se insiste em levar adiante o que começou, acreditando que pode salvar a história e salvar o pai ao mesmo tempo. A motivação é compreensível e, ou melhor, visceral. O obstáculo passa a ser moral e material, porque qualquer gesto pode produzir perdas imediatas.
Corpo, espaço e o preço da origem
A encenação acompanha esse deslocamento de controle. Quando Lara está sozinha, a ação privilegia espaço apertado, respiração curta, o som do próprio corpo; quando ela entra no perímetro de Trinity, os planos ficam mais geométricos e a ameaça ganha cara de procedimento, gente que fala em eficiência e aponta armas como quem carimba papel. Há um contraste útil: a personagem funciona melhor quando o filme a deixa errar, cair e tentar de novo, do que quando a trama precisa alinhá-la ao ritmo de um antagonista que explica demais e age de menos.
Essa escolha estética tem consequência narrativa. O figurino é de sobrevivência, não de desfile, e o roteiro insiste em transformar origem em atrito contínuo: assinar um documento, vender um objeto, confiar num estranho. Decisões pequenas acumulam consequência até que o caminho de volta pareça absurdo. Em alguns trechos, a necessidade de explicar a mitologia reduz a velocidade, mas a linha dramática permanece clara, porque volta sempre ao mesmo ponto: quem controla a pesquisa controla o destino de Lara.
Ao retornar àquele subterrâneo inicial, com a fita de Richard repetindo seu pedido de destruição, o filme parece resumir seu próprio motor. Lara ouve uma ordem, decide contrariá-la e se coloca em movimento. A partir dali, tudo é deslocamento e cerco, escolha e custo, uma jovem empurrando o próprio nome para fora da pedra.
★★★★★★★★★★




