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Um dos melhores filmes já feitos: e provocou uma revolução no cinema — na Netflix Divulgação / Warner Bros.

Um dos melhores filmes já feitos: e provocou uma revolução no cinema — na Netflix

“Matrix” chegou aos cinemas em 1999 com a tranquilidade de quem sabe que não seria entendido de imediato. A história começa acompanhando Thomas Anderson, vivido por Keanu Reeves, um programador que divide seus dias entre códigos corporativos e uma inquietação difusa, como se algo estivesse fora do lugar. À noite, sob o codinome Neo, ele trafega por fóruns clandestinos até ser localizado por Trinity, interpretada por Carrie-Anne Moss, e conduzido até Morpheus, personagem de Laurence Fishburne. O convite é simples e violento: descobrir que o mundo percebido é uma simulação mantida por máquinas, enquanto os humanos servem como fonte de energia. A partir daí, Neo precisa decidir se aceita a verdade e o custo que ela impõe.

A força do filme não está apenas nessa revelação inicial, mas na maneira como ela reorganiza o percurso do protagonista. Neo não vira herói por vocação, tampouco por coragem espontânea. Ele avança por desconfiança, tropeço e recusa, o que confere à narrativa uma dimensão quase íntima. A jornada é clara, direta e sem desvios artificiais: entender a Matrix, aprender a operar dentro dela e enfrentar seus guardiões, os agentes, especialmente o Agente Smith de Hugo Weaving, figura que mistura rigidez mecânica e um ódio crescente pela condição humana. Tudo caminha para o confronto final, quando Neo precisa escolher entre fugir ou assumir aquilo que Morpheus sempre acreditou que ele fosse.

Fé, controle e corpos em disputa

Ao estruturar esse embate, o filme articula ação e ideia sem sacrificar nenhum dos dois polos. As lutas, perseguições e saltos impossíveis não funcionam como distração, mas como linguagem. O corpo aprende antes da mente. Neo só compreende o sistema quando passa a agir contra suas regras físicas, o que transforma cada combate em argumento dramático. A direção confia na inteligência do espectador ao não interromper o fluxo para explicar tudo, mas também não se refugia em ambiguidades vazias. As regras da Matrix são estabelecidas, testadas e tensionadas até o limite.

Laurence Fishburne constrói Morpheus como um líder que carrega convicção e fragilidade na mesma medida. Sua fé em Neo não nasce de ingenuidade, mas de desgaste. Ele acredita porque já perdeu demais para não acreditar. Carrie-Anne Moss oferece a Trinity uma presença que foge do adorno romântico: ela decide, age e paga o preço das escolhas. Hugo Weaving, por sua vez, transforma Smith em algo mais inquietante do que um vilão funcional. À medida que o agente desenvolve aversão ao cheiro, ao toque e à imprevisibilidade humana, ele se aproxima perigosamente daquilo que afirma desprezar.

A narrativa não esconde suas camadas simbólicas. Neo carrega ecos messiânicos evidentes, reforçados tanto por falas diretas quanto por sua trajetória de morte e retorno. Thomas Anderson, o homem comum, precisa desaparecer para que Neo, “o Um”, exista. Há também ressonâncias filosóficas claras, da caverna de Platão às simulações de Jean Baudrillard, mas nenhuma delas exige erudição prévia. Elas operam como aprofundamento possível, não como senha de acesso. O filme funciona para quem busca espetáculo e para quem deseja fricção intelectual.

Talvez seja por isso que “Matrix” resista ao tempo sem precisar de indulgência. Ele não aposta em nostalgia nem em profecias tecnológicas. Seu incômodo é mais básico e, portanto, mais duradouro. A pergunta que ecoa após o confronto final não diz respeito às máquinas ou aos códigos verdes, mas à disposição humana de trocar conforto por consciência. Neo vence, sim, mas a sensação que fica não é de alívio. É de alerta. Porque, fora da tela, a escolha entre dormir e despertar continua sendo renovada todos os dias, com menos efeitos especiais e consequências bem mais reais.