Amy Townsend aprendeu cedo a olhar compromisso como armadilha e, desde então, usa isso como modo de atravessar a vida adulta sem se deter demais. Em “Descompensada”, Judd Apatow coloca Amy Schumer no centro, ao lado de Bill Hader e Brie Larson, para acompanhar uma mulher que escreve para uma revista masculina e sustenta uma rotina de bebida, sexo casual e regras rígidas de desapego. O conflito se impõe sem rodeio: ao se aproximar de um médico que insiste em conhecê-la de verdade, Amy tenta manter o controle e falha.
A narrativa começa pelo trabalho, e é por aí que o íntimo entra. A revista para a qual Amy escreve pede textos agressivos, chamativos, e a editora Dianna cobra eficiência com a mesma frieza com que escolhe manchetes. Quando aparece a pauta de perfilar Aaron Conners, um cirurgião ligado a lesões esportivas, Amy decide tratar a entrevista como mais um item do expediente. A resistência surge imediatamente: Aaron não se comporta como “fonte”; ele presta atenção, e essa atenção desloca as regras dela.
O filme progride por decisões miúdas que viram grandes porque Amy não sabe onde colocar o freio. Ela chega perto. Ela volta atrás. Ela testa o limite. Tudo nasce de autoproteção, mas o resultado é sempre um risco novo: quanto mais tenta parecer imune, mais deixa à vista o que preferia esconder. A comédia vive desse atrito entre discurso e gesto, entre o que ela repete para si mesma e o que faz diante de Aaron. O relacionamento vai ganhando corpo enquanto o roteiro antigo dela, de noites sem continuidade, começa a desandar.
O pai, a irmã e o mantra da monogamia
Essa desconfiança tem origem concreta, e o filme não a deixa no vago. Volta-se à educação emocional de Amy, marcada pela voz do pai, Gordon, repetindo para as filhas que a monogamia não é realista, ao mesmo tempo em que o casamento se desfaz. Anos depois, o mantra aparece em conversas e comparações silenciosas: a irmã Kim, casada e com filho adotivo, carrega uma estabilidade que Amy trata com ironia, talvez por não aguentar o espelho que ela oferece. Quando a família precisa tomar decisões práticas sobre Gordon, o afeto vira tarefa e o passado, em vez de lembrança, vira cobrança.
No trabalho, a história ganha um tipo diferente de pressão: ali, Amy aprende a ser performática. A revista recompensa agressividade, piada fácil, cinismo. É um ambiente em que até a intimidade vira pauta, e ela se acostumou a usar a própria vida como material sem calcular o custo. Ao insistir em escrever sobre Aaron, ela cria um problema adicional: precisa enxergá-lo como pessoa, não só como gancho. Dianna quer produto, e essa exigência empurra Amy para uma exposição que ela não domina.
Participações, esporte e o foco que escapa
Apatow e Schumer também exploram o universo do esporte como vitrine de encontros improváveis, e nem sempre isso ajuda. A presença de LeBron James interpretando a si mesmo, junto de outros nomes que orbitam o mundo de Aaron, traz leveza e um toque de autoparódia, mas há momentos em que a sequência de participações desvia o foco do conflito principal. Em vez de aumentar o risco de Amy, o filme parece se contentar em colecionar aparições. Alguns críticos apontaram esse excesso como distração.
O humor, quando mira a personagem, acerta com mais firmeza. Amy não foi desenhada para ser “fofa”. Ela é teimosa. Impulsiva. Fala demais quando deveria calar. Cala quando deveria explicar. Bebe. Passa do ponto. Faz piada para interromper o assunto. E, no minuto seguinte, percebe que perdeu a conversa. A graça vem do constrangimento que se acumula, da tentativa de sustentar uma pose que não aguenta a luz.
Rotina, repetição e o preço do caminho conhecido
Há ali, também, um desenho romântico que não depende de idealização. Aaron surge como alguém que quer rotina, presença, repetição, e isso se torna obstáculo concreto para Amy, que vive por regras como não dormir fora, não criar expectativa, não deixar rastro. O roteiro empurra os dois para o mesmo impasse diversas vezes, com variações de resposta, e é nessa insistência que a tensão cresce: cada vez que Amy escolhe o caminho conhecido, o preço aumenta. O filme não precisa anunciar a conta; ela aparece no desgaste, no corpo, na irritação que vira vergonha.
“Descompensada” tem 125 minutos, e esse tempo extra, típico de Apatow, abre espaço para que a comédia conviva com um desconforto mais íntimo. O ritmo nem sempre se mantém firme, e há trechos em que uma ideia se alonga até perder força. Ainda assim, a duração permite mostrar algo menos comum no gênero: mudança não como epifania, e sim como trabalho repetido, com recaídas. Amy é empurrada para escolhas menos fáceis, e a graça, em vez de aliviar tudo, às vezes torna a vergonha ainda mais aguda.
O que sustenta o filme, no fim, é a disputa entre duas frases que Amy carrega sem perceber: a que o pai ensinou e a que o próprio corpo desmente. Quando ela se vê diante da possibilidade de “limpar o ato”, como a sinopse costuma resumir, a decisão deixa de ser apenas sobre romance e vira sobre identidade, sobre o que ela aceita repetir para continuar se protegendo. Apatow fecha o arco sem transformar trauma em slogan, preferindo deixar Amy diante do próprio eco, daquele mantra antigo que parecia verdade até a vida exigir outra resposta.
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