Um menino corre. E, em “Corra, Menino Corra”, o diretor Pepe Danquart acompanha Jurek (Andrzej Tkacz) enquanto ele troca a infância por um instinto de conservação. Baseado em fatos reais, o filme começa com a fuga do garoto, de oito anos, do gueto de Varsóvia depois da morte dos pais. A tarefa é direta e quase irreal: seguir vivo sozinho num território em que qualquer voz pode entregar sua origem, e qualquer encontro pode virar sentença, sem revelar o destino final dessa corrida.
O movimento que sustenta a narrativa é o deslocamento, tanto no mapa quanto dentro do próprio corpo do personagem. Cada trecho, pela floresta, pelas aldeias, pelos campos de trigo e pelos estábulos, altera a medida do risco e a sensação de tempo. Ao se enfiar num celeiro, com soldados passando por cima, o som de botas e tábuas faz o minuto se esticar. Já nas estradas cobertas de neve, o relógio parece andar depressa demais: se ele não corre, congela; se corre, aparece. A montagem assume essas pulsações e faz da sobrevivência uma cadência, irregular e nervosa.
O filme se recusa a dar ao percurso um verniz de aventura. Danquart filma com severidade, encostado no chão, e a trilha não vem para amparar emoção alguma: o que ocupa a cena é vento, lama, cascos, tiros que às vezes nem se vêem. A câmera fica perto de Jurek, como se dependesse dele para encontrar abrigo também. E o menino aprende rápido: ajusta sotaque, inventa sobrenomes, aceita trabalho bruto quando não há escolha. Cada aquisição nasce de uma ameaça. Quanto mais ele domina o jogo, menos sobra da criança.
Confiar, sumir, correr: a moral da sobrevivência
Quase toda situação se arma na mesma encruzilhada: confiar ou não confiar. Quando uma camponesa o recebe por compaixão, ele se deita sem descanso; quando um soldado finge que não o viu, o silêncio pesa mais do que um grito. A lógica é cruel e repetitiva, e o filme não disfarça isso: Jurek se aproxima, é identificado, precisa correr outra vez. Aproxima, some, volta a tentar. Esse círculo dá ao enredo um tipo de cronômetro moral, em que o tempo marca, a cada volta, uma perda pequena de fé.
O diretor também evita o atalho do heroísmo. Jurek não é apresentado como ícone, e sim como presença frágil, um corpo que tenta não chamar atenção. A câmera não o ergue; ao contrário, muitas vezes o reduz, deixando-o pequeno diante da paisagem, um ponto atravessando o branco e o cinza. Há momentos em que ele parece ser engolido pela natureza. E, paradoxalmente, é nesse apagamento que encontra chance de vida: quando fica quase invisível, a guerra o deixa passar por alguns metros, por alguns segundos.
Abrigos, cerco e a claustrofobia do acolhimento
O cerco aparece como outro motor, porque todo abrigo cobra um preço e pode virar armadilha. O menino entra em casas de famílias católicas, em fazendas de agricultores, em lugares que prometem proteção e trazem, junto, pânico. O medo de quem o acolhe, às vezes, ocupa mais espaço do que o dele. Numa sequência muito precisa, a câmera se demora numa cozinha acesa por vela: uma mulher corta pão, o garoto espera, o marido pensa demais. O gesto de dividir comida é também o gesto de dividir perigo. A cena dura um pouco além do confortável, e é essa duração que dá a ela a tensão certa.
O filme alterna espaços abertos e confinamentos curtos, sem permitir que nenhum deles soe como solução. A floresta, em planos mais longos, parece imensa, mas a liberdade ali é quase imaginária: há latidos ao longe, gritos em alemão, ruídos que o menino não consegue localizar. As casas e os celeiros, por sua vez, dão abrigo imediato e exigem imobilidade, silêncio, a disciplina do invisível. Fora, o risco é disperso; dentro, ele pode se materializar num olhar. A fotografia, assinada por Daniel Gottschalk, acompanha essa oscilação com luz natural e tons frios que, às vezes, quase dissolvem o rosto do garoto no cenário.
Quando o corpo cansa e o tempo aperta
As atuações obedecem ao mesmo princípio de contenção. Andrzej Tkacz sustenta a maior parte das cenas com um rosto que alterna cálculo e desgaste, sem recorrer a sinais fáceis de desespero. O medo raramente aparece como pânico; aparece como atenção. E quando ele sorri, o sorriso parece menos alegria do que ferramenta, uma tentativa de parecer inofensivo, aceitável, alguém que não trará problema. Elizabeth Duda e Jeanette Hain, nos papéis adultos que orbitam essa fuga, encarnam o outro lado da guerra: gente que ajuda, que hesita, que se protege enquanto decide o que fazer com uma criança perdida.
Na segunda metade, a narrativa deixa o cansaço físico ocupar mais espaço. O corpo de Jurek vira inventário: feridas, sujeira, pequenos cortes, marcas que não pedem comentário. A montagem encurta os intervalos de repouso; a chance de respirar fica menor, e o tempo parece acelerar. Cada novo esconderijo exige uma renúncia adicional: mudar o nome, apagar pistas, evitar certas palavras, silenciar o passado. A fuga, que começou como defesa, se instala como hábito. Ele já não procura chegar a um lugar; procura continuar andando. Correr vira identidade.
Em alguns momentos, a estratégia lembra o realismo seco de “A Fita Branca” e “O Pianista”, mas sem procurar a imponência visual desses filmes. Aqui, a guerra não entra como espetáculo de cenário, e sim como ruído constante, às vezes fora de quadro. A escolha aproxima o relato da experiência do corpo: frio, fome, espera, o peso da terra quando é preciso se deitar e sumir. O tempo do esconderijo se impõe, e o som, muitas vezes, é o primeiro a denunciar o perigo, antes mesmo da imagem.
Perto do fim, há uma hesitação diante de um campo aberto. O vento levanta poeira, e Jurek parece não reconhecer mais a direção certa. Ele para. Pouco. O suficiente para que o espectador sinta que, sem movimento, ele não sabe o que é. Seguir ou ficar, naquele segundo, tem o mesmo peso de escolha impossível: qualquer decisão custa caro, qualquer pausa pode cobrar juros. A cena não precisa de explicação, porque o corpo do menino já explica.
“Corra, Menino Corra” não tenta reconciliar o espectador com o que mostra. A imagem final não oferece consolo, nem fecha o sentido com laço. O menino permanece vivo, mas a vida já mudou de nome, de temperatura, de textura. Danquart encerra sem sublinhado, quase em silêncio, como quem entende que há um limite para traduzir horror em cena. O que fica é simples e duro: a respiração, irregular, insistindo no escuro.
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