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Isabelle Adjani sorri, o perigo se instala: um filme francês venenoso no Prime Video Divulgação / Diamond Films

Isabelle Adjani sorri, o perigo se instala: um filme francês venenoso no Prime Video

Em “A Farsa”, Nicolas Bedos parte de uma história de sedução e manipulação para compor o retrato moral de um país fascinado por aparência e poder. Pierre Niney faz Adrien, ex-dançarino com a carreira interrompida e o orgulho junto, que se envolve com uma mulher mais velha, vivida por Isabelle Adjani, rica e influente. Marine Vacth interpreta Margot, jovem oportunista que cruza o caminho de Adrien num verão de luxo e desespero. O conflito central é simples, quase banal: dois sobreviventes de mundos distintos tentam se usar para escapar da própria mediocridade e acabam presos num jogo que mistura amor, dinheiro e identidade.

O filme toma a Riviera como laboratório do fingimento. Mansões, marinas, restaurantes: cada cenário parece empenhado em cobrir o vazio de quem o ocupa. Bedos filma o luxo com um olhar bifocal, seduzido o suficiente para admitir o magnetismo do brilho, afastado o bastante para mostrar a decomposição que ele carrega. Adrien, se recuperando de uma lesão que destruiu sua vida na dança, aceita a dependência financeira e afetiva de Martha (Adjani) como solução de sobrevivência. A decisão inicial é prática, quase cínica: trocar charme por conforto. Com o tempo, quando a convivência vira rotina, ele percebe o detalhe cruel do acordo: a humilhação vem embutida.

Adrien, Martha e o contrato do conforto

É aí que surge Margot, bela e instável, enxergando em Adrien um cúmplice para a própria ascensão. A relação nasce do acaso e da carência, mas logo se transforma em plano, um plano que pede mentira, performance e sangue frio. O eixo dramático é o do procedimento: existe uma missão, uma promessa de golpe, uma espécie de investigação moral em curso. As etapas desse jogo se revelam devagar, menos pelo que os personagens afirmam e mais pelos silêncios, pelos olhares, por pequenas traições de tempo. Bedos conduz esses movimentos com humor amargo, quase cruel, em que cada gesto calculado parece alimentar uma ilusão maior.

A comédia, aqui, funciona como disfarce. Bedos troca de tom com uma precisão seca: um diálogo leve que escorrega para a ameaça, um jantar elegante que vira interrogatório. Niney e Vacth sustentam o equilíbrio difícil entre desejo e autopreservação, interpretando personagens que conhecem o preço de parecer livres. Adjani, por sua vez, com presença quase espectral, encarna uma aristocracia em declínio, presa à própria teatralidade. Cena após cena, ela reforça a ideia incômoda de que poder, quando apoiado em afeto comprado, vira dependência.

Montagem e ponto de vista no jogo da encenação

A montagem, nervosa e fragmentada, serve à tensão entre realidade e encenação. Os saltos de ritmo e a justaposição de tempos, festas, lembranças, pequenos interrogatórios, dão a impressão de que o espectador também participa da farsa, tentando montar um quebra-cabeça que não fecha. Há ecos de “O Talentoso Ripley” e “Perdas e Danos”, mas Bedos evita o pastiche; prefere o desequilíbrio, a hesitação. O som ajuda: conversas abafadas, música ambiente insistindo em cobrir o que não deveria ser ouvido, risadas que duram um pouco além do confortável.

A tensão moral cresce em torno da dúvida: quem engana quem? Quando Adrien hesita em seguir adiante, pesa mais o medo do crime ou o medo de voltar à insignificância? Margot, ao contrário, avança sem freio, convencida de que beleza e desespero podem ser armas legítimas. O plano que os dois montam é simples, mas o que está em jogo é a própria definição de identidade. Num mundo onde todo mundo interpreta papéis, um gesto de sinceridade já nasce sob suspeita.

O luxo repetido e o riso que não alivia

Há momentos em que o filme parece se alongar mais do que precisaria, sobretudo quando Bedos insiste na coreografia do luxo. Ainda assim, essa repetição cumpre uma função: o tédio das festas, os brindes intermináveis, os risos forçados compõem um fundo de ironia quase trágica. O humor entra no drama como veneno. A gente ri, mas com desconforto. A comédia é elegante; o riso, não.

O ponto de maior risco aparece quando o plano deixa de ser só jogo e passa a produzir consequência material. Um erro de cálculo, uma reação emocional fora de hora, e toda a construção de manipulação ameaça desabar. Bedos conduz a escalada com a eficiência de quem conhece o teatro social: o colapso de uma mentira costuma vir menos do imprevisto do que do desgaste de sustentar o disfarce. Nesse momento, fica claro que não há inocentes, apenas diferentes graus de cinismo.

Riviera como fachada: luz, vazio e desfecho em suspensão

A fotografia, quente e solar, contrasta com o tom sombrio do enredo. A Riviera surge como paraíso de fachadas: a luz não purifica, expõe. Em algumas cenas, a câmera insiste em planos longos nos rostos, como se procurasse um traço de verdade no meio do artifício. Não encontra. E essa recusa combina com o projeto de Bedos: um policial sem vilões nítidos, uma comédia sem alívio, um drama sem redenção.

Quando a trama se aproxima do desfecho, fica a sensação de que ninguém sai ileso, nem mesmo o público. O golpe pode funcionar ou não, isso importa menos. O que pesa é o cansaço que sobra, a percepção de que amor e mentira, em certos ambientes, são variações do mesmo jogo de sobrevivência. Na última sequência, o silêncio tem um peso quase físico, como se qualquer confissão fosse desnecessária. A câmera demora num rosto impassível, numa paisagem ao fundo, num rumor distante de festa. A farsa segue, como se nada tivesse acontecido.

Filme: A Farsa
Diretor: Nicolas Bedos
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Crime/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★