“Cidade dos Anjos” nunca teve pudor em apostar alto no sentimentalismo, e talvez por isso continue sendo tratado com certo desdém crítico. Ainda assim, há algo de curioso na maneira como o filme insiste em falar de desejo, perda e fé num espaço improvável como Los Angeles, cidade onde o sagrado costuma disputar atenção com o concreto quente e a pressa. Dirigido por Brad Silberling, o longa parte de uma premissa simples: um anjo que se apaixona por uma humana para tensionar o que há de mais contraditório na experiência afetiva, o desejo de permanência e a certeza da finitude. A pergunta central não é exatamente teológica, mas corporal. Vale abrir mão da eternidade para sentir o peso de um toque?
O anjo que observa
Nicolas Cage constrói Seth como uma presença deslocada, quase desconfortável. Seu anjo não seduz pelo carisma tradicional, mas pela estranheza: fala pouco, olha demais, parece sempre à margem do mundo físico. Há algo de infantil e inquietante nessa composição, o que torna ainda mais interessante sua obsessão crescente por Maggie Rice, a cirurgiã vivida por Meg Ryan. Seth não entende o desejo como metáfora; ele quer o corpo, a dor, o frio, o risco. Essa literalidade o afasta do romantismo clássico e aproxima o personagem de uma curiosidade quase antropológica sobre o que significa estar vivo. Cage sustenta essa ambiguidade com um controle raro, evitando caricaturas bobas.
Maggie Rice e o corpo como fronteira
Meg Ryan entrega aqui uma de suas atuações mais contidas. Maggie é apresentada em crise após perder um paciente na mesa de cirurgia, e o filme é inteligente ao usar o hospital como espaço simbólico: ali, o corpo é território de disputa constante entre técnica e acaso. Maggie não é uma mulher atravessada apenas pelo romance, mas por uma culpa profissional que a fragiliza e a torna permeável à presença de Seth. A atração entre os dois nasce menos do encantamento imediato e mais de um reconhecimento silencioso: ambos lidam diariamente com a morte, ainda que por caminhos opostos. Ryan suaviza seu habitual brilho romântico e investe numa melancolia quase física, que dá densidade à relação e evita que Maggie se torne apenas um objeto do desejo angelical.
O hospital como palco da verdade
Um dos aspectos mais surpreendentes de “Cidade dos Anjos” está no cuidado quase obsessivo com as cenas médicas. A sequência da cirurgia cardíaca, conduzida com perfeccionismo técnico raro no cinema, funciona como contraponto direto à fantasia central. Enquanto o discurso espiritual flutua, a câmera se ancora em instrumentos, procedimentos e decisões precisas. Essa atenção aos detalhes não é gratuita: ela reforça a ideia de que o filme leva o corpo a sério. Não se trata de uma abstração poética sobre a vida, mas de uma insistência em mostrar seus mecanismos, limites e falhas. O erro, a desistência precoce na reanimação, volta depois como culpa narrativa e moral, amarrando emoção e consequência.
Entre anjos e humanos
Os personagens secundários ajudam a deslocar o filme do eixo puramente romântico. Andre Braugher interpreta Cassiel com serenidade quase terapêutica, funcionando como consciência silenciosa de Seth e como lembrete do preço da escolha. Já Dennis Franz rouba cenas como o paciente falastrão e aparentemente banal, cuja presença injeta energia e ironia num relato que poderia se tornar excessivamente solene. Há também uma escolha curiosa de locações, como a biblioteca usada como espaço de contemplação, que reforça a ideia de observação constante dos anjos sobre os humanos, sempre atentos, nunca participantes.
O amor como decisão radical
O problema central do filme não está na premissa, mas no modo como o desfecho manipula emocionalmente o espectador. Ao transformar a escolha de Seth em uma espécie de punição disfarçada de lição, o roteiro flerta com um moralismo que empobrece sua própria pergunta inicial. A perda final parece menos consequência do acaso e mais uma armadilha narrativa, uma tentativa de dar peso trágico a uma história que já discutia finitude de forma suficientemente contundente. Ainda assim, é difícil negar o impacto emocional da trajetória. A trilha sonora de Gabriel Yared, especialmente o tema principal, insiste em ficar na cabeça depois dos créditos, como uma lembrança incômoda.
Entre a delicadeza e o excesso
“Cidade dos Anjos” talvez não alcance a complexidade filosófica de “Asas do Desejo”, de Wim Wenders, que lhe serve de inspiração direta, mas encontra uma identidade própria ao apostar sem pudor na emoção. Seu maior mérito está em assumir o risco de parecer ingênuo num cinema cada vez mais cínico. Ao tratar o amor como uma escolha radical, que exige renúncia e expõe o sujeito ao acaso, o filme se revela menos interessado em consolar do que em provocar desconforto. E talvez seja exatamente aí que ele sobreviva ao rótulo de romance açucarado: na coragem de lembrar que sentir, às vezes, custa caro demais.
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