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Elenco de peso na Netflix: Meryl Streep, Viola Davis, Philip Seymour Hoffman e Amy Adams estrelam obra-prima do século 21 Divulgação / Miramax

Elenco de peso na Netflix: Meryl Streep, Viola Davis, Philip Seymour Hoffman e Amy Adams estrelam obra-prima do século 21

“Dúvida” se passa em 1964, num colégio católico do Bronx que funciona menos como espaço educativo e mais como território de vigilância. A diretora, irmã Aloysius Beauvier, interpretada por Meryl Streep, governa pela intimidação. Seu olhar antecede a punição; sua voz dispensa explicações. Não se trata apenas de rigidez religiosa, mas de uma crença profunda de que o medo é um instrumento legítimo de formação moral. Aloysius acredita que a ordem depende da contenção absoluta do afeto, e que qualquer brecha pode abrir caminho para o caos. Nesse ambiente fechado, quase claustrofóbico, a rotina é marcada por regras que não admitem questionamento. O colégio parece isolado do mundo, mas o mundo insiste em bater à porta, trazendo mudanças que ela se recusa a aceitar.

É nesse contexto que surge o padre Brendan Flynn, vivido por Philip Seymour Hoffman. Carismático, informal, interessado em aproximar a Igreja das pessoas, Flynn representa uma ruptura. Ele conversa com os alunos, conta histórias nos sermões, incentiva atividades esportivas e parece genuinamente preocupado com o bem-estar dos jovens. Para Aloysius, esse comportamento soa suspeito. A tensão entre os dois não é apenas moral, mas política: ela defende a permanência de uma autoridade vertical, enquanto ele aposta numa relação menos hierárquica. O conflito se intensifica quando o padre passa a demonstrar atenção especial a Donald Miller, o primeiro aluno negro da escola. A possibilidade de uma conduta inadequada se instala não como fato, mas como desconfiança, e isso basta para mover toda a engrenagem do filme.

A ingenuidade como espelho

Entre esses dois polos está irmã James, interpretada por Amy Adams. Jovem, sensível e ainda desarmada diante da dureza institucional, ela percebe sinais que não sabe nomear com precisão. Vê Donald sair abalado de um encontro com o padre, encontra uma camisa suja de vinho, sente que algo não está certo. Sua insegurança alimenta a convicção de Aloysius. James funciona como consciência inquieta, mas também como reflexo da dificuldade humana de distinguir percepção de prova. Ao contrário da diretora, ela hesita. E essa hesitação, em “Dúvida”, não é fraqueza: é conflito ético. A personagem encarna o desconforto de agir quando não se tem certeza, e o medo de errar por omissão ou excesso.

O confronto mais devastador do filme acontece quando Aloysius conversa com a mãe de Donald, papel de Viola Davis. Em poucos minutos, a narrativa ganha uma camada social brutal. A mulher deixa claro que sua prioridade não é a verdade abstrata, mas a sobrevivência do filho num mundo hostil. Se o padre oferece proteção, ainda que ambígua, ela está disposta a aceitar. Essa cena desloca o eixo moral do filme. A questão deixa de ser apenas certo ou errado e passa a envolver desigualdade, silêncio imposto e escolhas feitas sob pressão. Viola Davis domina o diálogo sem elevar a voz, deixando claro que, para algumas pessoas, não existe o luxo da indignação moral. Aloysius sai desse encontro abalada, mas não recua. A convicção, aqui, funciona como escudo contra a complexidade.

Certeza como instrumento de domínio

O roteiro de John Patrick Shanley organiza o embate como um duelo verbal em que ninguém confessa, ninguém prova e ninguém absolve. Aloysius age como se a certeza fosse um direito adquirido por sua posição. Ela não investiga: sentencia. A possível culpa de Flynn importa menos do que a necessidade de manter o controle. Philip Seymour Hoffman constrói um personagem escorregadio, cordial demais para ser plenamente confiável, mas humano demais para ser reduzido a vilão. Cada gesto pode ser lido de formas opostas, e o filme se sustenta exatamente nessa ambiguidade. O espectador é forçado a ocupar o lugar mais desconfortável possível: o da dúvida permanente.

Ambientado num momento de transição da Igreja Católica, o conflito reflete algo maior que um caso isolado. As reformas do Concílio Vaticano II aparecem como ameaça para quem confunde fé com imobilidade. Aloysius combate mudanças não por devoção espiritual, mas por apego à ordem que lhe concede poder. Quando o padre é transferido, não há vitória. O sistema absorve o conflito e segue adiante, como sempre fez. A suposta punição não traz alívio, apenas vazio. A instituição se preserva, mas cobra seu preço emocional.

Filme: Dúvida
Diretor: John Patrick Shanley
Ano: 2008
Gênero: Drama/Mistério
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★