O poder terapêutico dos cães manifesta-se de uma maneira silenciosa na vida dos seres humanos, um bálsamo quase milagroso que alivia doenças da carne e do espírito. Para muita gente, a simples presença de um cachorro já é o bastante para transmitir segurança e uma ideia de pertencimento, miudezas que vêm escasseando nas relações. O afeto canino é direto e incondicional, sem maiores ambições que uma tigela de comida e um passeio ao cair da noite, benéfico também para nós. O cinema faz bom uso desse longevo relacionamento de trinta mil anos, e “O Amigo” deixa claro que o assunto continua a render. David Siegel e Scott McGehee compõem uma alegoria sobre os laços misteriosos que unem as pessoas, sujeitos a uma ruptura unilateral e definitiva.
Desde o momento em que vemos a luz do mundo pela primeira vez, todos nós corremos contra o relógio, na esperança de termos alguma chance real de ser felizes. Esta busca obsessiva pela felicidade, que pode se tornar patológica quando sob o pretexto de que deve ser alcançada a qualquer custo, certamente é um dos venenos da vida pós-moderna. Num esforço de reparar erros cometidos ao longo da vida, opta-se por um caminho ilusório de felicidade, artificial e enganosa, cujas armadilhas deixam rastros de infortúnio na jornada daqueles que se atiram neste abismo e também para os que assistem ao grotesco espetáculo de perto, sem esboçar uma reação. Iris e Walter passam por isso.
Baseado no livro homônimo de Sigrid Nunez, de 2018, o roteiro de Siegel e McGehee capta os lances tragicômicos da convivência de Iris, uma escritora de Nova York tão talentosa quanto atormentada, e Walter, seu melhor amigo e uma influência cujo vigor ela soube aproveitar. Os diretores vão dando um ou outro indício do que irá acontecer com Walter e ninguém fica surpreso quando ele sai de cena, malgrado seja a partir do choque dessa realidade, nova e lamentável, que o filme decole. A herança que Walter deixa para Iris é Apollo, um imenso dogue alemão malhado de olhar distante e bochechas flácidas que talvez já intuísse o destino do tutor e que vira o centro da vida da nova consorte, dando-lhe as lições que seu mentor não pudera lhe dar. O cachorro costura as lembranças que Iris tem de Walter, e Naomi Watts, Bill Murray e, claro, Bing, o “intérprete” de Apollo, levam o espectador a refletir sobre a finitude e os motivos para se convencer de que a teimosia é uma qualidade.
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