Há dois Oliver Stone. No ocaso da vida, a militância algo utópica (e muitas vezes cega) de Stone tem comprometido a honestidade intelectual de seu trabalho em diversas ocasiões. Se até meados dos anos 1990, o diretor compunha relatos efusivos contra o dito sistema, de que também sempre soube fazer parte, mas preservava o brio moral que o consagrou como artista, depois de “Nixon” (1995), análise da biografia do 37º presidente dos Estados Unidos — obrigado a renunciar depois de implicado no escândalo de Watergate, em que figurões do Partido Republicano foram acusados de espionar e invadir a sede do Comitê Nacional Democrata, no Complexo Watergate, em Washington —, uma luz vermelha se acendeu forte para ele. “Entre o Céu e a Terra” integra essa fase de idealismo desinteressado, romântico, sem lugar para as hipocrisias tão rentáveis que seus laços com figurões de Washington lhe proporcionam. Aqui, o diretor tece um comentário cada vez mais indigesto sobre o turbilhão de insensatez, egoísmo, psicopatia e dor a rodear uma mulher no inferno luminoso do Sudeste Asiático, uma de suas obsessões.
Com “Entre o Céu e a Terra”, Stone fecha uma trilogia sobre o Vietnã antes e depois da guerra, iniciada por “Platoon” (1986), sobre suas memórias como um jovem praça durante o conflito, e seguida por “Nascido em 4 de Julho” (1989), baseado na autobiografia de Ronald Lawrence Kovic, um soldado que muda suas convicções acerca da América Grande após ficar paraplégico em combate. Pela primeira vez, Stone manifesta interesse por iluminar as perspectivas e os anseios de uma personagem central feminina num de seus filmes, e o faz justo no cenário de conflagração bélica entre as tropas americanas e o exército norte-vietnamita. Caudaloso, o roteiro de Jay Wurts inspira-se em “When Heaven and Earth Changed Places” (“quando o Céu e a Terra trocaram de lugar”, em tradução literal; 1989) e “Child of War, Woman of Peace” (“filha da guerra, mulher da paz”, idem; 1993), autobiografias de Le Ly Hayslip, empresária vietnamita-americana radicada na Califórnia. Batalhadora desde sempre, Le Ly imigrou para os Estados Unidos ainda moça, mas teve tempo de absorver o caos social patrocinado pelos militares americanos em Ky La, a aldeia de arroz que era seu mundo.
A fé dos camponeses é inabalável, porém Ong Troi e Me Dat, o Pai do Céu e a Mãe da Terra, não são capazes de fazer frente à sanha imperialista que varre Ky La, e os adidos sul-vietnamitas encarregam-se do serviço sujo. Stone não economiza nas cenas que retratam a abjeção da guerra, e Le Ly é estuprada depois de uma surra, para a “glória da revolução”. Hiep Thi Le (1971-2017) confere à personagem uma doçura tão natural que o passado de Le Ly torna-se quase uma distante fantasia no momento em que ela volta ao Vietnã, casada com Steve Butler, o oficial interpretado por Tommy Lee Jones. A menção ao salvador branco que resgata a heroína do calvário exuberante sublinhado pela fotografia de Robert Richardson quase empana “Entre o Céu e a Terra”, mas a jornada de Le Ly é maior que isso.
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