No sul dos Estados Unidos do início do século 20, Celie atravessa a vida sob uma violência doméstica que tenta reduzir sua existência à obediência; em “A Cor Púrpura”, Blitz Bazawule segue essa mulher negra enquanto ela procura, passo a passo, romper o isolamento e alcançar autonomia, amparada por vínculos com outras mulheres. Fantasia Barrino ocupa o centro do filme, com Taraji P. Henson e Danielle Brooks como presenças decisivas ao redor, num relato que se estende para mostrar o quanto a dignidade pode ser trabalho diário, feito de escolhas pequenas e efeitos imediatos.
A pressão volta como maré: sobreviver num espaço que fere e, ainda assim, insistir em existir por conta própria. Celie carrega traumas ligados ao pai e ao marido, e a opressão não nasce apenas de uma pessoa, mas de um mecanismo social que protege o mando masculino e trata humilhações como rotina. A narrativa encontra uma forma seca de dar peso a esse confinamento ao se apresentar por meio de cartas, escritas quando falar parece perigoso demais. Cada carta é pedido de amparo e, ao mesmo tempo, tentativa de manter algum fio de identidade vivo, mesmo que a resposta demore ou não chegue.
Canto e irmandade como motores da narrativa
Por ser um musical de época, a adaptação escolhe pôr corpo e voz onde antes havia contenção. O canto desloca o foco: quando a vida de Celie parece presa ao mesmo território, a música abre passagem para o que ela sente e não consegue nomear, e também para o que as outras mulheres enxergam nela. Baseado no romance de Alice Walker e no musical que ganhou vida nos palcos, o filme herda uma história marcada por brutalidade e tenta traduzi-la numa linguagem de espetáculo que busca energia mais afirmativa, sem abandonar o peso do que está em jogo.
O núcleo da narrativa, porém, não está no enfeite, e sim na irmandade como ferramenta de sobrevivência. As sinopses insistem no apoio de uma comunidade de mulheres, e é desse apoio que nasce a pressão dramática mais aguda: alguém oferece abrigo, outra exige postura, uma terceira aponta uma saída. Com isso, Celie passa a ter, além do medo, um objetivo. O obstáculo muda de forma. Já não é só aguentar o dia seguinte, mas sustentar uma decisão sem que a casa, a tradição e o controle masculino a esmaguem por completo.
Casa. Terra. Igreja. Trabalho. Olhos por perto. A regra vem antes da conversa. A ameaça não precisa gritar. Celie aprende a medir o próprio tamanho. Só que medir também cansa, e o cansaço vira faísca.
O tempo no olhar, o elenco e as ênfases
Bazawule filma essa faísca com atenção ao tempo, porque a história se prolonga por anos e pede paciência do olhar. A montagem precisa fazer o espectador sentir o acúmulo sem transformar a passagem do tempo em atalho, e a música ajuda a costurar elipses com emoção direta. A fotografia reforça a alternância entre sufoco e respiro, com cor e brilho quando o mundo se abre um pouco, e com um registro mais fechado quando a pressão se impõe, criando um confronto contínuo entre opressão e possibilidade.
Dentro desse desenho, o trio central encara uma tarefa ingrata: sustentar gravidade sem abandonar o impulso musical. Fantasia Barrino assume Celie num registro de contenção que evita a caricatura da vítima; a mudança aparece em microgestos, não em discursos. Taraji P. Henson dá à cantora Shug Avery um magnetismo que muda a temperatura das cenas e funciona como convite, às vezes como provocação, abrindo uma linha de desejo que também é aprendizado de autonomia. Danielle Brooks faz de Sofia uma força de confronto e lembra que coragem também recebe punição.
Como toda nova adaptação de um material tão lido, o filme vive de escolhas de ênfase. Esta versão aposta num caminho mais luminoso em certos trechos e, com isso, reposiciona o centro emocional de passagens decisivas. Também há um cuidado evidente em não transformar a dor em espetáculo puro: quando a violência surge como ameaça, o interesse está menos em ilustrar e mais em registrar seus efeitos, a forma como ela molda atitudes, silêncios e o tipo de medo que se aprende a chamar de normal.
Quando acerta, a história deixa claro que autonomia é sequência de decisões, e não prêmio; ou melhor, que qualquer prêmio só aparece depois de muitas decisões custosas. Celie precisa reconhecer quem a diminui, confiar em quem a fortalece e sustentar uma palavra própria em ambientes que lucram com seu silêncio. A música pode soar exuberante, mas o fundamento é concreto: vínculos que protegem, gestos que abrem passagem, uma carta que vira voz e uma voz que cresce até ocupar espaço.
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