Colt Seavers reaprende a andar com cautela, como quem testa o chão antes do salto. Em “O Dublê”, Ryan Gosling vive o especialista em cenas de risco que deixa Hollywood depois de um acidente e escolhe desaparecer para se proteger, até topar voltar a um set na Austrália. Emily Blunt interpreta Jody Moreno, ex-namorada e diretora estreante; Aaron Taylor-Johnson é Tom Ryder, astro que some. Sob a direção de David Leitch, o conflito se arma numa tarefa dupla: manter o filme de Jody de pé e localizar Ryder sem expor quem dita a versão oficial.
Convocado pela produtora Gail Meyer, Colt aposta que esse retorno pode funcionar como reparo, profissional e afetivo. A razão é simples: ele quer recuperar o trabalho e a confiança de Jody no mesmo gesto. Só que o estúdio impõe regras de etiqueta e contenção, pedindo discrição, velocidade e nenhuma pergunta fora do combinado. A volta, então, deixa de ser apenas serviço; vira missão paralela, com a obrigação de parecer normalidade.
Entre trailers e caminhões, ele decide circular como se ainda fosse parte do sangue da equipe. Cutuca o chefe de efeitos práticos, o relações públicas, o assistente de direção, sempre com o álibi de quem procura o próximo ensaio. A intenção é ganhar tempo antes que a filmagem trave e o comando de Jody seja colocado em xeque. O obstáculo é a blindagem em torno do astro: sorrisos curtos, respostas tortas, portas que não se abrem. O resultado empurra a busca para além da zona segura do set.
A investigação fora do set e o risco sem verniz
Longe da engrenagem da produção, a investigação pede um tipo de coragem pouco elegante. Colt segue rastros que o levam a um clube noturno, a um apartamento alugado às pressas, a contatos que negociam informação como quem vende ingresso. Ele escolhe ir adiante porque cada recuo aumenta a chance de Jody perder a oportunidade de concluir o primeiro grande filme. A resistência vira corpo: dor, surpresa, desorientação. Leitch filma brigas e perseguições com geografia nítida, e o humor nasce do esforço de Colt para manter algum decoro enquanto apanha.
O tempo, aí, encolhe. Ele entra no carro errado. Liga para a pessoa errada. Escuta a mentira certa. Corre. Escorrega. Levanta. Insiste. O que move Colt muda de escala: não se trata de salvar o mundo, mas de impedir que uma versão conveniente se instale como regra. O obstáculo é a rapidez com que comunicados se inventam e se espalham. O efeito aparece em decisões miúdas, pagas em hematomas.
Jody mantém o filme de pé sob pressão
Do outro lado, Jody decide continuar filmando mesmo sem a peça central, porque parar significa escancarar a porta para executivos, seguradoras e substituições. Ela tenta conter o caos com ensaio e disciplina de equipe, insistindo na rotina como se a rotina fosse escudo. Só que a direção, ali, precisa negociar com vaidades e prazos, e os pedidos chegam embalados como gentileza, mas soam como ordem. Dessa teimosia sai um efeito duplo: a produção anda e, andando, usa Colt como tampão para buracos que não são dele.
Em certo momento, Colt escolhe esconder de Jody o motivo real de estar ali, ou melhor, escolhe contar apenas o suficiente para permanecer por perto sem provocar uma ruptura imediata. A meia verdade parece prática, mas bate num obstáculo moral curto e implacável: confiança não aceita gambiarra. Isso aparece nas conversas cortadas, no silêncio antes do corte, no cuidado que ele tenta oferecer sem ter direito. Na pausa de um take, alguém comenta, quase como quem repete uma regra antiga, que o elogio costuma parar no ator.
Versões compradas, trabalho repetido, corpo em contrato
Quando a busca por Ryder encosta em gente que não tem interesse algum em cinema, o procedimento ameaça sair do trilho. Colt resolve ir além da função de dublê e virar negociador, isca, testemunha, porque percebe que o desaparecimento pode servir a quem precisa limpar a própria imagem. O obstáculo é a desigualdade de força: quem paga compra versões; quem cai assina silêncio. O risco, então, se expande para fora da comédia, sem abandonar o passo de aventura.
Nessa alternância, o filme encontra seu melhor terreno nos detalhes do trabalho. Um ensaio que não fecha. Um figurino que rasga no momento errado. Um plano que exige repetição porque o corpo falha um centímetro. Colt decide insistir nessas repetições porque elas oferecem uma verdade material que a investigação não garante. O obstáculo é a exaustão, dele e do entorno, acumulada como poeira. O efeito é recolocar a fisicalidade como motor dramático, e não como enfeite.
Mais adiante, o maior aperto se arma quando Colt precisa escolher entre cumprir uma marcação segura, como manda o protocolo do set, e improvisar um movimento para segurar uma prova frágil que pode desaparecer em minutos. O motivo é direto: sem esse gesto, a história conveniente vence e a produção vira cúmplice. O obstáculo é que improviso, ali, não é bravura; é chance real de trauma. A sequência cresce em tensão, sustentada por estalos metálicos e respiração curta, e a decisão pesa porque o corpo volta a ser contrato.
“O Dublê” encontra uma imagem que mistura afeto e ofício: um gancho preso, uma mão conferindo o nó, alguém dizendo “ação” com a voz já gasta. Colt toma uma última decisão de lealdade, mais para a equipe do que para a fama, e o obstáculo continua suspenso, como corda esticada no ar. O espetáculo parece se alimentar dessas quedas repetidas, e de quem volta a levantar.
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