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Você não está preparado para o golpe que é esse filme no seu coração: do mesmo roteirista de Anora, agora na Netflix Divulgação / Cinema Inutile

Você não está preparado para o golpe que é esse filme no seu coração: do mesmo roteirista de Anora, agora na Netflix

Se o nome Sean Baker não te parece familiar, talvez este lembrete desperte a memória: “Anora“. Diretor e roteirista do filme que se tornou um dos mais comentados e premiados de 2024 e 2025 no circuito internacional, incluindo reconhecimento expressivo na temporada de premiações, com destaque para o Oscar de Melhor Atriz para Mikey Madison, Sean Baker é hoje um dos cineastas mais relevantes do cinema contemporâneo.

Caracterizado por um cinema de viés cinéma-vérité, Baker constrói narrativas que retratam a vida real de forma honesta, visceral, humana e despojada de artifícios. Obras como “Tangerine“, “Projeto Flórida“ e “Red Rocket“ pavimentaram seu caminho até o sucesso de “Anora“ e ajudam a entender a aclamação consistente que seu trabalho vem recebendo. Há, em sua filmografia, uma sensibilidade rara para personagens à margem, filmados com dignidade e complexidade.

O encontro com Shih-Ching Tsou e a parceria criativa

Sean Baker conheceu Shih-Ching Tsou em 1999, na The New School, em Nova York, quando ambos aperfeiçoavam seus estudos em cinema. A partir desse encontro, nasceu uma amizade que se transformaria em uma colaboração artística duradoura e decisiva para a trajetória de ambos.

A parceria resultou em filmes fundamentais do cinema independente norte-americano e, agora, em “A Garota Canhota“, longa dirigido por Tsou e coescrito, produzido e montado por Baker. O filme teve circulação internacional e chegou ao streaming em alguns territórios, virando uma joia discreta que merece ser descoberta, e debatida, aqui na Revista Bula.

Por que fazer um filme usando iPhone?

Uma das primeiras informações relevantes sobre “A Garota Canhota“ é sobre como como suas imagens foram captadas. Seguindo experiências anteriores de Baker em “Tangerine“, e também dialogando com iniciativas de cineastas como Steven Soderbergh, o filme teve a maior parte de suas cenas gravadas com aparelhos iPhone Pro em resolução 4K.

A escolha não é apenas econômica, embora relevante no cinema independente, mas estética e narrativa. Smartphones oferecem grande mobilidade, não chamam atenção em locações externas movimentadas e deixam os atores, especialmente crianças, mais confortáveis diante da câmera.

É importante ressaltar, no entanto, que câmeras digitais profissionais também foram utilizadas, principalmente em situações que exigiam maior controle de luz, profundidade de campo ou latitude de exposição. Ainda assim, para “A Garota Canhota“, o uso predominante do iPhone faz absoluto sentido ao reforçar o tom naturalista e íntimo exigido pelo roteiro.

Enredo

A história se passa nos dias atuais, em Taipei. Shu-Fen (Janel Tsai) é uma mãe solteira que sustenta sozinha suas duas filhas: a adolescente I-Ann (Shih-Yuan Ma) e a pequena I-Jing (Nina Ye). Ela administra um pequeno restaurante em um mercado de rua e enfrenta dificuldades financeiras constantes.

Enquanto isso, I-Ann tenta ajudar em casa trabalhando em uma distribuidora de bebidas que funciona como fachada para o tráfico de drogas, inserindo a personagem em uma economia ilegal tratada de forma silenciosa e pragmática. I-Jing, por sua vez, passa parte do tempo sob os cuidados dos avós e acaba sendo convencida pelo avô, profundamente tradicional, de que não deve usar a mão esquerda, apesar de ser canhota, pois essa seria “a mão do diabo“.

O desfecho do filme traz revelações familiares e segredos ligados à sobrevivência cotidiana, fazendo o espectador a reavaliar toda a narrativa acompanhada até então.

Nina Ye: uma atuação construída no silêncio

O grande charme de “A Garota Canhota“ está na atuação de Nina Ye. Sem experiência prévia como atriz, ela foi escolhida justamente por não carregar vícios de performance nem familiaridade excessiva com a câmera.

A produção buscava uma criança que não se exibisse, que reagisse mais do que performasse. Nina foi selecionada por sua introspecção e por olhar para a câmera com curiosidade, não com apelo. Sua personagem fala pouco, e sua atuação se constrói por meio de microexpressões, gestos contidos e reações espontâneas, que revelam uma compreensão emocional muito maior do que a verbal.

A canhotice de I-Jing funciona como metáfora central do filme: um comentário sobre o controle dos corpos, a disciplina desde a infância e a padronização do comportamento em sociedades conservadoras.

Um olhar político sem julgamento

Shih-Ching Tsou não julga as escolhas de suas personagens. Mães solo, trabalhos informais e conexões com o crime são apresentados não como falhas morais, mas como lógicas de sobrevivência dentro de um sistema que oferece poucas alternativas.

“A Garota Canhota“ é, sobretudo, um retrato da adaptação feminina em um mundo que não foi moldado para acolhê-las, muito menos para privilegiá-las. Tsou não marginaliza suas personagens; ao contrário, insere todas em um espaço de sobrevivência urbana, operando fora da visibilidade pública, onde o afeto, o silêncio e a adaptação tornam-se estratégias fundamentais para seguir em frente.

Filme: A Garota Canhota
Diretor: Shih-Ching Tsou
Ano: 2025
Gênero: Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.